6.6.09

Maria VII

Dez horas da manhã. O despertador do celular toca, Maria estende o braço até a cabeceira e aperta o botão para "modo soneca". A cena se repete sete vezes, sem serem contadas, em intervalos de dez minutos. Maria levantou, ligou o som que começou de onde havia parado na noite anterior, despiu-se, e nua afrontou o espelho do banheiro. Maria era bonita, cabelos castanhos longos e lisos, os olhos vivos. Olhou olho no olho, depois mais de perto debruçada sobre a pia. Olhou o próprio rosto inspecionando minuciosamente cada poro, do queixo a testa, demorando-se no nariz: espremeu dois cravos. Afastou-se e observou as próprias curvas. Com as mãos Maria levantou os seios e empurrou um contra o outro. O olhar fixo através do espelho naquela realidade absurda que é o reflexo exato sem a distorção do que é pessoal - o espelho impessoal. Maria escovou os dentes com os olhos ainda sobre si. Calma, entrou no boxe minúsculo para um banho quente. Maria tinha calma, observava as formas que lhe mostravam os olhos como quem admira uma beleza natural. Os azulejos ordenadamente separados pela pasta branca endurecida e amarelada, o boxe de plástico fosco com formas em relevo, o alumínio coberto de uma ferrugem alva, a substância de estado indeciso do sabonete pipocando bolhas, o movimento ametódico da água que caia do chuveiro como se viesse do próprio oceano e abraçava toda Maria, a gravidade baixa, era tudo natural. Nesse estado de entorpecência em que Maria mergulhava nas coisas, podia atingir uma glória, uma aleluia própria da ínfima unidade que a milhões de anos perdeu-se na criação. Eram os únicos momentos nos quais Maria era verdadeiramente feliz. A felicidade irrevogável e a compreensão extenuante logo lhe escapavam pois não eram sustentadas por nenhum esforço que não o da própria existência. Mas Maria, quando percebia, queria manter aquela resolução absoluta para todos os problemas do mundo, inclusive os seus. E já não sabia se havia perdido o estado de graça no instante de percebê-lo ou no esforço necessário do seu instinto de sobrevivência.
Maria se vestiu com a primeira roupa a vista que encontrou intocada estendida na cama em que dormiu. A camisa estivera ali estirada talvez por dias sobre a cama de casal que era toda de Maria, a outra metade da cama pertencia ao que largava ali quando se cansava de usar. Foram abandonados nessas condições uma calcinha branca, um velho short jeans, um livro de letras pequenas a séculos interrompido pela metade, um caderno de rabiscos e algumas canetas hidro-cor. Maria enfiou um bloco com alguns textos rascunhados na mochila, depois uma caneta, um casaco, o celular, a bolsinha de moedas e notas, e largando as janelas do apartamento abertas como de costume, saiu trancando a porta antes de enfiar por último as chaves no mesmo compartimento que todas as outras coisas. Maria desacompanhada desceu o elevador encarando o espelho, estava hoje especialmente encantada com a sinceridade de tal dispositivo. Mas talvez nem fosse por isso que tanto encarava, fato era que Maria hoje não irreconhecia o que via. E aproveitava.
Térreo. Maria dá no pátio do condomínio de prédios antigos e velhas estocadas cujo único contato com o mundo era prestar queixa da vizinha Maria, especialmente pelo som integralmente ligado em alturas absurdas para seus ouvidos já surdos. Rua. Maria percorre algumas poucas quadras já familiares na enorme cidade estranha e cinematográfica. Maria espera a condução no ponto, um ônibus grande e novo, climatizado e com poltronas fofas de veludo colorido. O ponto, em frente a entrada de um famoso colégio católico frequentado por adolescentes sonhadores e perdidos talvez numa realidade alternativa saída diretamente da novela das seis e dos bolsos do pai freguês. Sempre ali no ponto alguns vendedores de rua com suas barraquinhas que não passam de quatro pernas de madeira que suportam um compensado remendado e recompensado ocultado por debaixo de caixas e caixas das mais variadas guloseimas de diversas marcas e sabores, na maioria balas mentoladas para refrescar o hálito dos adolescentes enamorados ou dos caprichosos. No ponto Maria reconhecia alguns rostos do ônibus, mas nunca chegara mais perto, nunca chegaria, aliás, a sequer conhecê-los. Pois no ônibus Maria entrava e sentava-se sozinha torcendo para ter as duas poltronas livres para se esticar na leitura de um ou dois contos que deveriam ser suficientes para fazê-la viajar por todo o percurso. Nessa época Maria já não mais familiarizava com o mundo real, ou talvez, como ela própria pensava, se familiarizava demais, pois sentia correr na veia o mesmo sangue escuro de sombra daquele que todo ser vivo sangrava. Maria era tão viva que às vezes não se encontrava no estado desperto onde o tempo desenrolava no mundo cotidiano dos detalhes que esvaecem na repetição.

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