8.6.09

Maria VIII

Maria acabou de chegar exausta da faculdade, mais cansada da distância que das aulas pois pouco prestou atenção. Maria percebe seu ponto quase pelo padrão das luzes amarelas e azuis que riscam o ar do lado de fora da janela do ônibus. Ela vai equilibrando-se do balanço até o motorista, "Fico aqui", desce, "Boa noite". A calçada dá para um parque arborizado, um oásis na cidade, já fechado agora às onze. Do outro lado da rua movimentada mesmo a essa hora, famílias inteiras remexiam as enormes pilhas de sacos pretos de lixo de um enorme prédio residencial, daquele bairro particularmente nobre, de frente para uma bela e poluída praia frequentada não pelos moradores dali. Maria se aventura pelos quarteirões em direção ao lar, só seu. As luzes coloridas dos postes atravessam a umidade salgada do ar noturno produzindo lindos halos de riscos finos de luz em todas as direções da circunferência, como o próprio sol que as mariposas ali à noite confundiam. Maria se distrai na caminhada habitual. Ela pára num bar para comprar cigarros, dois maços de carlton, hoje a noite vai ser longa, segunda feira, e Maria não gosta de ficar sem cigarros pela manhã; ela se desvia dos bêbados e das cadeiras empilhadas até o balcão. Depois Maria vai ao super mercado para comprar bebidas, ela se diverte na seção alcoólica toda coloria e sempre a de maior variedade nos mercados. O lugar já quase fechando e Maria apreciando atentamente alguns rótulos que ainda não conhecia, tão coloridos, de riscos delicados e simétricos, arredondados, letras de fontes charmosas e clássicas. Maria se decide por algumas cervejas long neck, que ela gosta mais, e o bom e velho Dom Bosco. Maria sempre se divertiu com o padre pedófilo que literalmente milagrosamente era algum tipo de padroeiro da escola em que estudou toda a sua vida. Ao chegar em casa Maria ligou o som com a trilha sonora da própria vida, pôs as cervejas molhadas no congelador e serviu-se de um copo de vinho quente e roxo num de seus copos enormes de meio litro, gostava de copos grandes pois poderia por tanto que levaria mais tempo até precisar reabastecer, Maria era de uma preguiça sonhadora. Sentou-se de frente para a janela aberta que se estendia por toda a parede da sala; dava boas goladas no vinho. No escuro Maria observava os apartamentos dos prédios próximos através de suas janelinhas coloridas, já familiarizava com as luzes de cada um, aquele com a tevê sempre ligada na novela, a do quarto com persianas e o armário recortado em tiras, aquele do jovem vidrado no monitor, a área de serviço com o varal das toalhas verdes e laranjas, aquele que só se via o borrão da lâmpada pelo vidro escurecido. Maria fumava seus cigarros mais saborosos com a bebida, batia as cinzas num cinzeirinho de alumínio que a antiga moradora deixara ali.
Maria não tem fome, sempre ansiosa com o próprio destino distante. Fraca com a bebida, fato que nunca a envergonhara e nem reclamara, algumas músicas mais tarde e Maria já estava tonta, media o tempo pelas músicas, quando media. Se levantou para dançar um pouco, como uma bailarina balançava os braços inteiros, as mãos, como de maestro, armadas, o corpo serpenteava no ritmo musical, lentamente Maria ía de um lado para o outro com os olhos fechados no escuro. Acendeu outro cigarro e entre uma golada e outra via a brasa riscar a escuridão no mesmo movimento de seu corpo desperto no mistério da noite solitária. Maria já havia passado da metade da garrafa e começava a confundir as coisas. Ela mesma, a cadeira, o piso, o apartamento, o prédio, a vida lá fora, Maria andava descalça sem rumo, sem destino, se esfregando nas paredes num impulso de lambê-las com a língua seca, sem palavra, sem a quem dirigi-las. Maria olhava tudo o que podia de perto, analisando descobria que a textura das coisas era do que as coisas eram feitas, seus pedacinhos irregulares comprimidos pela união da singularidade das coisas. O tecido do sofá era milhões de finas linhas entrelaçadas que deixavam buracos numa proporção maior que a própria superfície vista de perto. As paredes eram na verdade uma casca dura e opaca com saliências e vales, grãos de areia que a tinta cobriu eram como espinhas pontudas; em certos lugares a tinta branca já descascava e deixava à mostra o tecido vivo e feio do prédio. A televisão que era peças de plástico encaixadas, frágeis e negligenciadas como se tivessem sido destacadas de uma cartela. Todo pedaço de ferro já era enferrujado e as folhas brancas já estavam marcadas do que se escreveu por cima. Maria se alarmava pois a virgindade de tudo já havia sido explorada, fuçada e largada a decadência de beata; abraçou a parede mas a única resposta que obteve foi o frio que lhe beijava a bochecha e não cedia pois vinham da raíz mais profunda do prédio na terra. A matéria exata da noite lhe caía sobre os ombros, mas se as coisas se mostravam tão límpidas era dever de Maria julgá-las, e aí confundia ao inspirar o vento que percorria o apartamento de janelas abertas, trazendo até ela novidades na percepção do próprio pensamento. A vida eloquente de bêbada, percebia toda a sua vida como se estivesse sempre embriagada de uma lucidez ferrenha e ditatória, Maria queria ter alguém com quem dançar uma valsa em comemoração ao triunfo de uma certeza vibrante cujo assunto era desnecessário salientar por isso mesmo tinha-se certeza porque nada era resolvido mas não era mesmo importante que o fosse - o importante era dançar a valsa manca de um par.
Maria fora para cama com uma garrafa de cerveja, batia a cinza do cigarro na mesinha de cabeceira, que alojava um telefone e folhas A3 empilhadas cheias de desenhos de bêbada e da faculdade. Maria dormiu de braços abertos, sem se cobrir, com o travesseiro entre as pernas. A alegria íntima estava justificada e o amor impessoal tivera seu significado. Maria roncava morta e acordaria com olheiras de quando fosse defunto. Maria atingira o triunfo necessário daquele dia, espremera a noite até que não restasse estrela e se escondeu segura no esquecimento de si mesma ao sonhar a noite toda um sonho que não recordaria ao despertar.

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