6.8.10

Ana VI


Ana estava carente, quase doente. O problema era do mundo. E Ana sofria da doença redundantemente febril. Ana não tinha muita certeza, queria viver, mas era difícil. Ana tinha que estudar, mas não estudava. Ana tinha que trabalhar, mas não trabalhava. Ana tinha que namorar, mas não queria. Ana precisava do esforço injusto e sem direção que a vida exige. A vida exigia demais, e Ana não trabalhava. Para que? Ana perguntava qual era a razão de ter que fazer o que não queria. Ana perguntava porque precisava tanto, Ana não sabia do que, nem para quem de fato perguntar. Ana sabia o que não queria. Ana não queria nada. E mesmo quando trabalhava era como se não o fizesse, porque a labuta era insensível. Quando estudava não aprendia. Quando namorava não sentia. Não tinha o sentido último que a vida promete. Não tinha a eternidade que a alma confia na vida implicitamente e serve de comprometimento com a realidade. A vida não tem trilha sonora, não recompensava a ousadia que Ana nem tinha. Ana queria poder olhar pela janela e ver uma árvore. Ana queria sair na rua e cruzar com um gato - Ana queria fazer carinho. Mas o ônibus demorava, Ana esperava. A secretaria estava fechada. O professor não ía. O cartório impossível. O banco não abria. O horário do curso não batia. A academia não gostava. O yoga esquecia. E chovia, era tão mais difícil sair de casa. A rua estava tão cheia. Ana não queria olhar no olho hostil da legião vampiresca que era a multidão que surge com o dia. Mas a multidão vivia, e parecia a Ana que ela mesma não, porque por alguma razão, ou sem razão, Ana não fazia parte da multidão. E se fizesse seria tão pior. Ana queria viver na essência das coisas, mas não encontrava. Porque quanto mais fundo mergulhava nas coisas menos entendia, e parecia que estava parada. Seus amigos viviam, e Ana não. Qual futuro teria Ana se não vivia? Um futuro sem passado, vida que sempre existira. Ana dormia. Ana queria alcançar, ser alguém. Ana queria viver dos sentidos, da arte e da harmonia. Mas onde iria chegar com essa mentira, porque era mentira que parecia. Mas Ana sem querer sentia, e como sonho parecia verdade. Sentia que havia escolhido errado a cada escolha passada. Sentia que fizera errado, mas não mudava do instinto materno de optar pela utilidade, mas era sem aplicação para a vida. E que vida era essa? O que seria da vida se não contasse uma história? Ana queria continuar de onde havia parado, mas retomava pelo começo. Ana queria encaixar cada dia no anterior, mas não servia. Ana tentava, mas cada hora que vivia era maior e mais fatal, porque de fato envelhecia. Ana não entendia que o dia de ontem havia durado tanto quanto o dia de hoje duraria, e que era ela a mesma, mas não parecia. Não lembrava que o mesmo sentimento que tinha hoje dizendo que mudara fora a razão de ontem para não ter tido coragem, e aí não tinha a braveza necessária de hoje porque precisava se preparar pra nova vida que teria a partir de amanhã, quando supunha realizar seu futuro de uma só vez. Mas o que seria depois? E de certo não importava, porque de hoje não sobraria nada que pudesse aproveitar amanhã. A preparação era uma prece, e da prece nada sobra. Parecia a Ana que precisava de alguma forma enganar a vida, mas vivendo parecia que a vida não existia, existia Ana e o dia, e viver era o verbo a rimar a vida versada de Ana.

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