8.8.10

Maria XI


Maria olhava a chuva cair, quase poético, que Maria pensava? Quase patético! Maria não pensava em nada, se parasse para ver, tinha um problema ou outro, certo, mas tão normal, tinha suas coisas e lá vai. Ía assim, como se sabe por experiência própria - ía Maria, ela e a experiência dela, no sentido de experiência não experimentada, só vivida, pouco vívida, pouco sentida, mais lembrada, salubre; solitária, talvez, não além da conta. Maria e o escárnio secular filosófico sobre a vida de formiga de Maria e suas amigas. Ela, o termo pejorativo filosofia e o vocabulário hermético dessa modernidade viúva do tempo, eterno até o surgimento da palavra em tentativa de descrevê-lo como tal. Bom, o que não é nada bom é que Maria não funcionava assim; sua visão fascinada sobre as coisas simplesmente existirem estava entre o espetacular e o fantástico. No bar: - Esse papo de religião, revia Nina o assunto ensaiado. Eu acredito em alguma coisa sim. Não nesse deus (católico apostólico romano), mas em alguma coisa que tenha criado isso tudo, e preza por nós, e faz as coisas acontecerem, conclui emocionada. Acho que deus é todas as coisas, aprimorou Joana. Maria, longe repassava mentalmente a associação entre seus neurônios, instigada mesmo sem prestar atenção. Tudo bem, admitia o absurdo que era a existência simplesmente do nada. Então deus criara tudo. Mas quem criara deus? e simples assim invalidara milênios e civilizações interiras de teóricos refutados por uma lei absoluta - a matemática. Então sim, tudo sempre existiu: absurdo! E Maria sentia arrepiada a espinha entortar. Como? Como era absurdo tudo simplesmente existir; mas por que tudo simplesmente não existia? Não seria tão mais fácil nada haver? Mas as coisas haviam e Maria havia alcançado o estado de graça por deter durante alguns poucos segundos a sabedoria sobre o absurdo que é o mundo escondido bem debaixo de seus olhos. Então tudo existia e pronto! Desde o big bang quando antes nada havia pois era o início do tempo - e o fim de outro. E se Maria era pagã, Maria pecava, Maria pagava, Maria pagaria no céu. Porque era ela sentada na janela vendo a chuva cair, cantando rouca o que vinha à tona. Sabia utilizar da penitência para benefício próprio. E como era boa Maria, ali, sem exigir nada do mundo, nenhuma verdade maior, resolvendo-se em olhares desfocados. Experimentando sozinha o sentido genérico do mundo e quem a entendesse seria o seu amor. Pois seria tão fácil se comunicar através das formas de uma bromélia molhada na vida aflita do espinho de cacto que é sua folha pulsante de ancestralidade subentendida, Maria e as coisas que abriram mão da beleza em prol da sobrevivência, como ela mesma, compreendida e ajustada à solidão. As coisas vivas que continuam vivas justamente por terem recusado uma vida maior, a vida entendia de si mesma, vida sobrenatural. Maria dependia! Dependia ser Maria. Podia até ser que fosse, mas dependia Maria. Dependia ela própria da causa e fonte da vida. E se desprendia cedia ao instinto de agonia da vida certa, dia após dia às custas da epifania animal. Acabou que Maria foi desgraçar em vida cotidiana e feliz. Que diabos, aconteceu! Foi que foi acontecendo e enfim Maria percebeu, ou será que só pressentiu e nada aconteceu, sentiu o começo e o fim antes do começo, Maria estava na parte do ciclo em que as engrenagens descompassam e o mundo se acomoda num solavanco discreto e habitual. Por que Maria precisava disso? Por que? Porque era ela que foi ter do mesmo que causara. Que maldição crônica era aquela que a causava com se fosse ela mesma o abrigo, o abraço, o espinho, o aperto. Maria experimentou do acaso, experimentou ser ela mesma vítima dos seus tratos. E com ela mesma não podia lutar! Como era sem força sua vontade, sem controle, como estava Maria a mercê de outra pessoa e se reconhecia sendo o que a milhares de anos conheceu como o que tanto um dia dependia de Maria, vivia Maria, e Maria se sentia parte da própria vida, como se fosse vivida não por ela mesma. Maria sabia que não somos feitos para ver. Se fôssemos veríamos! Mas talvez sejamos nós os futuros criadores desses artificiais despertos. Mas há uma limitação que nenhum de nós há de superar: o universo só pode ser explicado a partir do próprio universo. Toda linguagem é metalinguística e daí a falha. Podia Maria apenas pressentir a explicação. Como se a tivessem roubado, Maria furtada. Então o que lhe tomava os pensamentos era: o que não poderiam tirar de Maria, um prazer fugitivo em passatempo misto e fugaz. Bom, era que tudo se experimentava e era tudo tão jovem e promissor e havia a música e a emoção de um momento detentor do mundo e amigos enfim amigos que relembram. Que poderia então Maria? para sentir provida - Maria e o que era só seu. Tão exagerados, tão extremos; as palavras que usavam eram esboços de uma revolta máxima, deficiente de pudor humano, eficientemente sobre-humanos, resistentes. O que Maria julgava somente ela capaz de profetizar, verdade fria e estéril, bendita. Se Maria brigava era porque queria certa intensidade e se levantava contra como ultimo recurso desesperado de uma força instintiva e carente. Era isto a salvação de Maria. Fé assustadoramente febril e cega, devotada e burra. Mas se não era essa também a própria Maria: o ser inadimplente com a esperança alheia, a sua, a espeança de Maria, não se chamava esperança e era assim. Maria salva pelo gongo, possivelmente arrependida. Que na verdade a inspiração era simples e banal. Que na verdade o que era em Maria especial era redundância fugaz que nada redundava mas sempre por enganar acabava, um convencer, que depois de tantas voltas não sabia mais de onde vinha e Maria aceitava o que já não sabia o que era: o seu inverso maquiavélico justificável, sua personagem e seu futuro no mesmo presente em que cabia. As plantas no hall não tinham flores, planta pobre, ar molhado. Maria, no entanto, pendia e como pêndulo dependia e novamente repetia o lado e pendia - Maria era assim: precisava de mais segurança se fosse saltar no abismo. E quanta raiva acumulou Maria, ela que tão boa, fora ter raiva de quem a amava pois sem saber Maria saltara e sofria por não mais estar em suas próprias mãos, mas era o abismo e não estava nas mãos de ninguém e não havia volta. Se porventura houvesse fundo Maria estaria ferida desde já, abatida e com raiva por não saber. Quem daria a Maria a segurança? quem cederia a Maria a própria segurança em troca de quê? da segurança de Maria. Mutuamente segurando-se. Maria então pendia, não era completa a segurança, não era completo o salto, não era completa Maria! Era isso? Maria queria então ser completa, e o que levaria para ser? se um dia decidira-se por ser. Ser ela mesma não bastava? bastava! não bastava era ser somente ela mesma, não bastava que somente ela fosse ela mesma, não bastava que o mundo girasse, não bastava a imensidão do desconhecido e não bastava o universo grande. Bastava o inverso: o dia pobre, o estresse, o esquecimento, o dever diário e a falta de expectativa febril que tem os pais como amantes e sua nostalgia de velhos. Quase uma doença! Pelo fato de ser da cabeça julga-se mal estar, mas ha se não é enfermidade a compulsividade bestial de Maria. A princípio por nada específico. Mas ha se Maria descobre certa noite antes de dormir o jogo no celular, se Maria descobre sem querer a novela que passa sem permissão, se Maria descobre que tudo é fértil a risadas, se Maria porventura descobre o cigarro e estava se vendo numa foto. Se Maria copia e se sente gente, Maria compulsiva como um soluço que se esquece, Maria enjoava, mas enjoava dela mesma. Até Maria se rendia ao Deus. Inclusive ela, que experimentava. Mas não por tentativa, pela própria natureza manifesta em desespero público da angústia. Também da paz na beleza das folhas coloridas e raras flores, presentes. No azul opaco do céu e verde fosco do mar, amar amar. Maria que queria comprar, tudo tão bonito, precisava, ainda precisava, amarga.

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2 Comentários:

Blogger santa paciência disse...

tantas mulheres... voltarei com mais calma e buscarei o princípio.

09:16  
Anonymous Anônimo disse...

que lindo o blog.
tenho a impressão que a fonte dos textos deveriam ser um tiquito maiores - não tao grandes quanto as minhas, mas...

02:48  

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