27.10.07

Formiga

Existe uma felicidade que é não mais que um bem estar, e ainda sim é a felicidade mais verdadeira a qual pode-se alcançar. E só se percebe de uma vez, de súbito, em tenra e gentil prontidão. Somos surpreendidos fora de hora e de época pela constatação inequívoca que reconhecemos, pois tão familiar, mas da qual não guardamos lembrança senão uma marca que cicatriza e não sabemos aonde foi. É uma felicidade tão doída e a gente aguenta como a um segredo guardado pois não sabe-se contar o sopro de vida senão com um suspiro, um olhar e no máximo, já quase perdendo o fio, com um sorriso leve que a ninguém se dirige e de ninguém exige retribuição.

Ah! a formiga! Que diante de nossa indelicadeza parece nascida como de uma forma - a forma em forma de formiga. A formiga unitária em marcha no extenso caminho de formigas que percorre em mão dupla o morro alto e desolado. Do cume ao pé as formigas realizam seu trabalho secreto de carregar não sabe-se o que não se sabe para onde ou onde jorra a matéria prima valiosa que só se encontra longe. A formiga, não sabemos temê-la pois sempre tão ocupada. A formiga divisível na avalanche ordenada de grãos inteligentes e dirigidos. A formiga, capaz de aguentar dez vezes o próprio peso e tem tão pouco tempo de vida e nenhum tempo de sobra para descansar do seu instinto engenhoso de mover-se, parar, andar, carregar, balançar as antenas, parar, andar em círculos sem tropeçar nas próprias centenas de pernas e patas que fixam na terra como alfinetes milagrosos do futuro.

Desprendera-se numa liberdade além do limite da prontidão do corpo capaz de manejá-la e absorvê-la como entendimento. Que liberdade era essa? intocável, luz no ar, invisível que se mostra por detrás das coisas possíveis, na sua impossibilidade opressora, como um fundo de descanso. Que liberdade é essa que torna as coisas sem fundo, sem palavra, destorna em existência nova a deslumbrar singularmente a vida íntima de um único ser vivo insaciável, instintivo, natural, sagaz a ponto de perceber-se desperto como a um sonâmbulo. A maturidade da voz cada vez mais nebulosa e incompreensível em suas origens mas que tanto satisfazem a necessidade prática de viver. A idade a avançar cada vez mais insignificante; as idades de conta jovem cada uma por si bastava de sensações a uma vida inteira, antes dos nervos incessantemente instigados a revidar, a anestesia precoce inevitável de um ser vivo que conta o tempo. Que liberdade é essa como uma vida inalcançável dentro de nossas próprias vidas, mas que é tão maior que é como um momento em comum de todas as consciências pregadoras de um rito. O que significa tudo isso se na prática vulgar busca-se apenas uma felicidade independente da verdade, uma benção na ignorância coroada a hóstia e vinho. De que importa tudo isso se é tudo a mesma coisa e se confundem a importância e o preocupado, de que vale a serenata fúnebre se o fim como o começo é indistinto para todos.

Ah se a vida não é pálida como uma vela e o calor, o calor, a luz vem da própria e lenta degradação risonha. Se a vida certas horas é tão impessoal que é feliz, se sua virtude pertubadora é alastrar-se sobre todas as coisas e a tudo tornar seu nicho de sobrevivência como uma engrenagem ecossistemática desequilibrada pelas eternas novas palavras que surgem no próprio ventre.

De olhos fechados a visão é tão real que só mentem os sentidos e em quem acreditar atribuindo a sinceridade mais virgem, aquela no olhar sempre imaturo de braços abertos, mas se de olhos fechados tudo que se é é tão ilimitado a ponto de ter-se certeza de que pode-se alcançar o estado de ser tudo, o próprio deus indivizível e justo, justamente humanizado, ávido e virtuoso herói, mártir de si mesmo.

Que liberdade é essa que me deixa desempregado? de tudo que eu não sabia até hoje que queria evitar como quando não se sabe o que se quer então se quer o que não se sabe. E que se está satisfeito e íntimo de si mesmo. Se está satisfeito da leveza quase material da consciência sossegada, o corpo quase largado, a rigidez perdida, o esforço vil da vaidade desprendendo energia para a vida de observar a vida local. O amor local, absoluto. A certeza primordial do olho no olho.

E por isso eu sou o ser inofensivo, o ser mais previsível do mundo, o ser mais amoroso, portanto, previsível.