23.11.06

Os ombros suportam o mundo

- poema de Drummond

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossege
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

13.11.06

A perfeição

- texto de Clarice Lispector disposto assim por algum padre

O que me tranqüiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.


O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fração de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.


Tudo o que existe é de uma grande exatidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exatidão
nos é tecnicamente invisível.


O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.


Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição.

8.11.06

Não


a que ponto há de chegarmos antes
daquele que expectante deveríamos
consentindo e anestesiados pelo mar gelado
amordaçados, não aguentarmos mais!
a palavra presa na garganta
exprimindo completos diagramas
preenchidos para nos enquadrar
a essas pessoas que vivem sempre
a vulgarmente prestar contas

poderia muito exagerar à beça
e pôr nas arestas dessa palavra-peça
plurais, aumentativos e superlativos
achados com audácia num dicionário encardido
que tanto esperava na estante
por esse instante de ignorância

ah! se não somos seres milagrosamente vivos
repetindo frases e saberes convencionados
tateando sós no escuro entupido
a repetir mais uma vez esperançosos
para responder com a medida absoluta
de conotação extensa e prazo vitalício
a um eventual vazio vício
que nos leve, só, a mais uma fuga

1.11.06


queria fazer borboletas
e borboletas voarem
dando piruetas
queria inventar formas
e pôr em flores

queria não ter de pintar
eu que pinto mal
se quizesse explicar
nuvens em
inusitadas cores

queria eu tudo que penso
idealizo, esquematizo
se tornasse real
além de mim mesmo

que eu crio
e não vale
será que vale
só de estar feito aqui?
dentro
não sei de quê

como o milagre
sem consciência
sem urgência e aleatório
se fez não só palpável
mas tão adimirável
e nós - inventores
de engrenagens e milhagens
de deuses
cuja imagem nos espelha
em nossa cidade
somos impotentes
diante de nossos próprios sonhos
como se fosse
necessidade vital
da esperança
não se poder alcançá-la
como nossos deuses
como nós mesmos

A Canção dos Amantes


- poema de Brasigóis Felício

Pode ser que seja agora,
ou não será jamais. Provavelmente
está muito longe o instante
do prazer vital. Enquanto
não suceder
este supremo acontecimento
em nossas vidas flagradas,
e não explodir o milagre
nos gestos plenos e gastos,
jamais teremos
orgasmos completos.
E ao invés de Ser
profundos, como o que os olhos
vêem, uma vez libertos,
somos de câncer
ou de capricórnio.
Quando seremos
mais vastos que nós mesmos?
Esse destino trágico
de nor(destinados): amarras
do amor morto no gozo.

E para o amor fomos feitos:
por isto nascemos das mulheres
e depois disso
só houveram febres, e sentimentos.
É nosso destino
beber das tempestades.
Impotentes para o amor em nosso peito,
para o amor fomos feitos: morrer no desejo
com esse nó no peito.

E mais os ossos,
sêmens, intestinos,
medo e bazófia
e perdas e degredos
e os milhões de cadáveres
de que somos feitos.

Ah! Esta hora miraculosa.
Não foi à toa que sobrevivi
a tantos desastres.
Do mesmo modo que Pessoa,
eu fico sempre à margem
de qualquer combate.
Campeão sexual, herói
para mim mesmo sonhando,
amante insabido
de todas as mulheres do mundo,
eu venho
gritando essas palavras
como um mudo
e se de alguma força me alimento
é dessa espera
de milênios que me leva.
Mas não. Permaneço à margem
de mim mesmo, com medo
de fitar a imensa face
do meu Ser multiplicado.