29.5.09

Maria VI

- origem

No princípio havia Maria. E casta, Maria dera a luz a Deus. E Deus, como já explicado e detalhado em um livro que lhe originaria, criara tudo o que existe. No princípio não havia Maria - o princípio era Maria e não havia onde haver. Neste tempo, que não era tempo, nada havia ainda sido delimitado às bordas da existência unitária de cada coisa e todas as coisas eram a mesma coisa. Maria, ainda sem graça e vergonha, imaginou o mundo, a vida, e vislumbrou a possibilidade de graça nesses novos enfeites que eram as quantidades possíveis das divisões entre as coisas. Foi a primeira vez que ocorreu a Maria existir outra pessoa. A segunda vez foi quando Maria, no fim de uma agonia, descobriu que o que carecia era de se comunicar e nomeou então todas as coisas com seus respectivos nomes, outra vez limitando suas existências pois as palavras poderiam ser lidas de trás para frente e em outras línguas - era necessário uma tradução que invariavelmente tornava lento o processo de entender as coisas na medida em que se demorava mais para sê-las. Logo as vidas passaram a durar menos tempo do que o ciclo de vida e morte do universo que passou a ser cada vez maior, épico até não se poder mais contar suas divisões no tempo de uma vida, era agora infinito e sempre.

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28.5.09

Ana IV

- àquela que não tem direção voltou (ou foi)

Tudo que Ana sabia era a quantidade da sua ignorância. Ana era barroca. Tinha a face barroca esculpida na cara. Era alta, fria, magra, o cabelo curto absolutamente preto na altura dos olhos, e mentirosa porque nem ela mesma sabia da verdade. Se a perguntassem o que estaria olhando renponderia: - as coisas, se tentatesse maior precisão haveria de confundir a si mesma, e quem perguntou teria ganho a resposta e a palavra de definição que aprisionaria Ana para sempre em lâmpada mágica ou em seu verdadeiro nome demoníaco cuja menção a subjulgaria para sempre. Ana vivia no exato mundo para o qual não fora feita. Pagava o preço de ser auto didata reaprendendo tantas vezes a mesma coisa. Ana sofria de presságios bons e maus e precisava seguidas vezes repensar a si mesma para decidir entre alegrar e entristecer. Nessas horas místicas sua religião era a superstição já que era a única na qual Ana poderia ser profeta, e Ana o era. Ana sempre começava do começo mas irreconhecia e poderia ser tudo ao contrário. Quando tentava explicar o meio se perdia na incógnita que era a transposição das coisas: Ana não sabia dizer os caminhos que tomara. Ana era incapaz de se aprofundar muito nas conclusões pois quando atingia certa profundidade todas as profundidades se confundiam e perdia o fio do que era mesmo. Ou Ana era demais superficial ou era profunda demais. Ana perdia a firmeza das mãos quando não sabia como reagir diante do que queria. Ana talvez quisesse só a possibilidade e quando alcançava lhe faltava a impossibilidade. Mas antes carecia da capacidade fundamental de transmutação. Ana previa o começo e o fim. Ana era um resumo da relevância de todas as coisas mas algo lhe faltava no conflito necessário das nuâncias que evitavam justamente uma coisa de ser a outra.
Espantava Ana a lucidez que era pensar num só dia, destituído de tempo, e ao mesmo tempo o dia era exato e era um símbolo. Um dia não poderia ser mensurado do modo como se medem horas, minutos. Um dia começava depois do começo e terminava antes do fim. Mas então qual era a novidade e o que escapava do habitual? Era o modo como Ana no mesmo dia podia admirar a passagem do tempo e noutra hora esperava a eternidade passar como quem espera sentado. E sentada via as coisas paradas que fatalmente envelheciam e não poderia corresponder àquilo com um sentimento de si mesma pois era incessante o seu observar de modo que não morreria nunca. Sua idéia de morrer seria então um desconhecimento, um esquecimento de tudo que não tinha idéia de como seria estar morta e desconhecer o próprio estado de morte. Já viva não podia perceber o que dentro de si mesma reconhecia o mundo, era algo que espreitava por detrás da própria Ana através do seu olhar oblíquo que ela somente poderia alvejar a própria consciência olhando para dentro e deixando as coisas turvas até inexistirem senão dentro dela mesma, e poderia aí então sentir o que era. Pensar na morte era impossível, pois se pensar na vida já era olhar para dentro, pensar na morte não poderia ser olhar para fora, nem ao menos para lugar nenhum se não houvesse quem olhar. Mas Ana nem sabia se viva, Deus!, se mesmo viva haveria quem pular amarelinhas na escola em meio ao alvoroço do recreio suado, se não ela mesma, ela que vendo enxergava com os próprios olhos. Se mesmo viva não seria ela mesma a força corruptora, suicída e vil do mundo que a milênios move o patriarca e o pebleu sob as mesmas ordens universais, comandos que por serem de máquina funcionam impiedasomente a subjulgar qualquer impulso humanitário ou egoísta. A maquinez era a natureza. De que outro modo se justificaria a engrenagem de dentes eternamente esculpidos contra os outros? E Ana precisava tanto justificar, pois achava que se não justificasse estaria alheia à ciranda. Mesmo nunca tendo se livrado da solidão ansiosa que tornara sua felicidade tão doída, pois tomando sua vida como movimento de compreender nunca chegara ao fim de uma só volta em torno da compreensão, sempre incumbida pela ordem suprema natural a uma compreensão superior em intermináveis vislumbramentos que se perdiam em sua própria engrenagem à parte, movida pelo fulgor do mundo o qual tentava forjar provas, confirmadas em escapes esfumaçados e poluídos dessa realidade verdadeira que achava não era a sua. Ou se era, Ana poderia concluir que sua realidade não era a mesquinha, pois a mesquinhez estaria no fato da realidade ser um recorte da sua verdade. E se fosse o contrário e todo o movimento vivo, confirmado pelos olhos dos outros seres que compartilhavam a realidade, Ana saberia que era ínfima parte, e saberia a quem entregar suas provas: ao deus criado!

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27.5.09

àquilo

- àquilo que não pode ser nomeado

Eu não sei o que aconteceu ao certo. Pessoas debandaram. Um monte de gente pirou. Eu mesmo já pirei uma vez. Nos recuperamos e mudamos. O que acontece eu não sei mesmo. Vem acontecendo. Éramos uma trupe. Na verdade várias, interconectadas através das amizades em comum. Não é errado falar que éramos uma população. Tínhamos uma cultura em comum, criada e cultivada por nós, reafirmávamos um o outro. Também frequentávamos os mesmos lugares, ouvíamos as mesmas bandas e líamos os mesmos livros, enfim, tínhamos as mesmas figurinhas.
E depois de tempos, aos poucos, sem se notar, tudo mudou, e não resta quase nada. Quer dizer, os resquícios são muitos e evidentes. O que se perdeu foi aquilo e hoje muito do que é é devido àquilo.
Eu falo por mim. Não soube o que queria da vida. Eu sofri da desilusão comum, mas levei muito a sério. Em seguida, deixei de querer alguma coisa específica. Perseguia um sentimento vago e segui filosofias relacionadas às coisas acontecerem naturalmente. Deixei levar. Parece que muita gente fez isso também, mas muita gente não. Alguns amigos largaram a faculdade, muitos mais trocaram de curso. Uma amiga passou a frequentar a igreja. Outra despertou um tipo de psicose. Eu mesmo tive pânico por um tempo. E muitos ainda estudam ou trabalham, ou os dois. Nós buscávamos um mundo que não existia, não onde e quando vivíamos. Muito menos sabíamos qual mundo queríamos e hoje ainda não sei nem acho que um dia saberei. É muito mais um sentimento. Não sei o que é preciso, na prática, pra estes sentimentos se tornarem um mundo: era essa a nossa inviabilidade.
É claro que nenhum de nós se arrepende porque, afinal de contas, devemos o que somos àquilo. E somos gratos pois adoramos o que somos. De qual outra forma mergulharíamos, com a respiração presa e de olhos fechados, fundo no que somos. De que outra maneira teríamos o mundo nú? e nós mesmos também despidos? Ali, como num microscópio, num divã, num telescópio, com nossa alma em cheque. Se auto analisando, sem conceitos, sem regras. Refletindo. E talvez o mais importante, estávamos acompanhados.
O que mudou está relacionado ao que nos excita. Os prazeres mudaram. Às vezes o prazer ainda é o mesmo. Mas sentimos de outra forma. Hoje eu sei muito melhor quem eu sou, mas não o que eu quero. E é esse conhecimento que me ajuda a traçar um rumo e seguir em frente. Meus objetivos são descritos pelo meu âmago. Assim eu tenho a certeza de estar no caminho certo, apesar de não acreditar que o caminho certo exista.

26.5.09

Graça II

- é preciso coragem

Graça que quando andava na rua ao ouvir conversas alheias tinha que fazer um esforço enorme para não rir. Seria deixar escapar que tomara para si as dores que os conversadores egoístas guardavam para si. Pois eram interlocutores humanos mundanos a conversarem, acima de tudo e sem terem consciência, com o próprio deus.
Oh! Graça era como o som proferido cujo significado vinha antes da interpretação da palavra como código letrado, o espasmo! Graça seria compreendia por uma civilização que por haver sumido a tanto tempo deixara rastros escassos que faltariam milênios até ser descoberta, e novamente esquecida. Assim era Graça! Imemorável de outra forma que não seja através da nitidez arqueológica da sabedoria popular, impessoal e dramatizada por atores fantoches num palco subconsciente coletivo paradigmático mas honesto de uma forma que apenas se reconhece a verdade e basta. Reconhecer-se é absoluto, como última tentativa da natureza de adestrar uma raça cuja evolução está em patamar artificial, diante da irresistível possibilidade de criar a si próprio, egoístas de papo furado, metodistas ateus e batistas escandalosos e a salvação misericordiosamente sócio-econômica.
Graça, no meio disso tudo, no mínimo perdida, perdida por saber demais, ela que não sabia de nada, mas achava que sim. A sorte de Graça era saber que muito do que deve-se saber é uma pista pra um saber maior adivinhado, e isso a salvava. Mas não pelo motivo que deveria ser salva. Era salva por sorte! Por que a princípio, saber que a verdade está no escuro não quer dizer que não se pode vê-la, mas Graça achava que não, Graça pensava que a verdade não deveria ser vista, e ela não entrava no escuro. E sem saber que poderia acender a luz, Graça viveria a vida engraçada.

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