23.6.09

Maria X

Certo dia Maria acordara pela manhã, de manhã mesmo, e a manhã gelada e pela janela, da cama mesmo, ela podia ver o quanto não poderia ver em decorrência das brumas matinais úmidas e geladas. Que dia bom! pensou Maria e quase de pijama foi tomar café na padaria sem pudor e com uma alegria que a tornaria por um momento um ser social e gentil e sem pudor gastaria mais dinheiro do que podia porque era início da semana e Maria, Maria usava o mundo como podia. Maria feliz, satisfeita pela manhã, a moça do caixa, o quanto sorriu para Maria, ela não sabia, Maria se usava o quanto podia, Maria não mentia, era boa, pessoa tão boa, era má só com ela mesma, Maria, e com quem nunca vira até aquele dia.
Que a alma é como ela mesma uma adivinhação, Maria tentava. Ingênua não, mas de uma coragem assustadora a perseguição. Uma vertigem da coisa dobrando-se sobre ela mesma, e se afastando, se inventando. A verdade? talvez olhar a coisa desarmada... mas é impossível ter o olhar nesta situação compacta e despreparada, pois se vê não percebe e então... Maria não tinha respeito pela natureza, era de um amor tão grande que pretendia tomar para si a sua maior parte. Que Maria então seria? Já isso ela adivinhava sendo o sentimento da resposta, sabia ao certo que era o máximo que alcançaria. Se bastava? E como! a felicidade daninha em vida obstinada e cega, teria uma verdade.
Maria sentiu o seguinte em termos matemáticos, que era a língua universal compreendida por civilizações alienígenas, sentia que a coisa era um plano, folha de papel, e por isso a coisa não se enxergava e se dobrasse para olhar veria o que não era ela mesma, pois distorcida perdia a propriedade mais primeira que era sua verdade escondida do deus. Mas e se houvesse o espelho? Podia Maria usar o atalho do aparelho perfeito, da tecnologia primitiva do tempo em que para se construir o engenho era só ir direto ao ponto, misturando, esquentando, experimentando uma alquimia metafísica e mística para se chegar até o elixir sobrenatural e pronto, não era tecnologia, era magia que a ciência hoje explicou com cara nua de pau e sem vergonha e pudor de quem já sabia.
Porque na verdade o cliente faz pedido, é um sistema, não se sabe. Maria se arrumou com tanto esmero, que vaidosa, iria sair. Maria percorria o apartamento, abriu a geladeira trinta e duas vezes, mas tão ansiosa que sem fome só beliscou morangos deformados e siameses, mas era estação de morangos! Bom, Maria já ía sair e da porta voltou mais uma vez para desligar o som. Pegou o ônibus em frente de casa, na rua escura passou uma senhora de casaco de lã vermelho - por que a senhora? porque Maria viu, Maria observava, não escapava do instinto febril de tomar conta do mundo. As nuvens laranjas no céu nublado. Chegou no bar, modesta, sentaram na caçada numa mesinha de ferro amarela, marca de cerveja. Joana contava como havia, por pura intuição do ofício, desvendado a pergunta do professor, como era uma pessoa feliz e engraçada! Maria e o mundo púrpura. Maria mau prestava atenção porque era como se já soubesse das coisas. Victor prestava atenção atento, e como aproveitava para olhar nos olhos vivos de Joana: Maria e a inveja. O garçom que vinha trazendo garrafas. Nina a tudo comentava, "ele sempre faz isso", Nina era sempre isso naturalmente e Maria não captava.

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17.6.09

Maria IX

Maria relembrava o passado, pretendia o futuro reciclado, que medo... A liberdade promissora, as possibilidades opressoras exclusivas entre si... que era aquilo: um sentimento conhecido que sentia como a um medo... que medo... Maria queria ser... Maria, que medo de tanto o que querer... o ciclo, ah, Maria poderia escolher ter certeza do ciclo...o passado... poxa Maria, quanto zelo por si, quanta vontade, humildade, Maria era linda, não poderia a nada dar as costas... por que Maria? que medo... deixar de ser... poderia ser uma escolha, será... Ah Maria, o problema é que é ela mesma a Maria, e então...
Maria sentia-se como uma aberração da natureza cotidiana. Por que fora ser logo ela? ela que se perdia na verdade intrincada tentando viver dia a dia com o próprio comprometimento com a verdade. Sabia que seria tão mais fácil, mas não podia, Maria já sabia demais. Ela mesma, desde que nascera, buscara demais a verdade, sentia-se como sem escolha pois no começo não sabia. Maria se metera demais com a própria existência. Percorria a vida como a um passeio e não sabia o que olhar não podia parar tinha tanto para não poder esquecer demais e fora suficiente e mais e mais.
Maria, no caminho, visitaria a praça. Maria visitaria a praça e coberta de árvores faria o percurso. Ela iria como que perdida, olhando para os lados e as vezes vigiando se não era seguida. Olhou para cima e o flamboyam das milhares de folhinhas verdes contra o sol num mosaico expressionista que doíam-lhe os olhos da luz e da beleza. Maria respirava do mesmo ar. Não parava de andar em nenhum momento, atravessava o mundo com uma marca quase invisível e inodora, seria lembrada devido a raiva que ela mesma causara nos outros, seria lembrada nos fins de semana pelo outro lado da família, seria lembrada por pessoas velhas que gostariam de vê-la derrotada pelo dia seguinte. Como Maria era ingênua! Tinha a vontadade como por devoção. Acreditava na solidão porque não tinha ainda pensado na sustentabilidade prática do isolamento social, pior, Maria havia confundido as proporções quanto a aproximação com o mundo metafísico e achava que a unidade do universo seria ultimato contra o contato sórdido com o solo cru. A umidade quando vista cheirava a mofo.

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8.6.09

Maria VIII

Maria acabou de chegar exausta da faculdade, mais cansada da distância que das aulas pois pouco prestou atenção. Maria percebe seu ponto quase pelo padrão das luzes amarelas e azuis que riscam o ar do lado de fora da janela do ônibus. Ela vai equilibrando-se do balanço até o motorista, "Fico aqui", desce, "Boa noite". A calçada dá para um parque arborizado, um oásis na cidade, já fechado agora às onze. Do outro lado da rua movimentada mesmo a essa hora, famílias inteiras remexiam as enormes pilhas de sacos pretos de lixo de um enorme prédio residencial, daquele bairro particularmente nobre, de frente para uma bela e poluída praia frequentada não pelos moradores dali. Maria se aventura pelos quarteirões em direção ao lar, só seu. As luzes coloridas dos postes atravessam a umidade salgada do ar noturno produzindo lindos halos de riscos finos de luz em todas as direções da circunferência, como o próprio sol que as mariposas ali à noite confundiam. Maria se distrai na caminhada habitual. Ela pára num bar para comprar cigarros, dois maços de carlton, hoje a noite vai ser longa, segunda feira, e Maria não gosta de ficar sem cigarros pela manhã; ela se desvia dos bêbados e das cadeiras empilhadas até o balcão. Depois Maria vai ao super mercado para comprar bebidas, ela se diverte na seção alcoólica toda coloria e sempre a de maior variedade nos mercados. O lugar já quase fechando e Maria apreciando atentamente alguns rótulos que ainda não conhecia, tão coloridos, de riscos delicados e simétricos, arredondados, letras de fontes charmosas e clássicas. Maria se decide por algumas cervejas long neck, que ela gosta mais, e o bom e velho Dom Bosco. Maria sempre se divertiu com o padre pedófilo que literalmente milagrosamente era algum tipo de padroeiro da escola em que estudou toda a sua vida. Ao chegar em casa Maria ligou o som com a trilha sonora da própria vida, pôs as cervejas molhadas no congelador e serviu-se de um copo de vinho quente e roxo num de seus copos enormes de meio litro, gostava de copos grandes pois poderia por tanto que levaria mais tempo até precisar reabastecer, Maria era de uma preguiça sonhadora. Sentou-se de frente para a janela aberta que se estendia por toda a parede da sala; dava boas goladas no vinho. No escuro Maria observava os apartamentos dos prédios próximos através de suas janelinhas coloridas, já familiarizava com as luzes de cada um, aquele com a tevê sempre ligada na novela, a do quarto com persianas e o armário recortado em tiras, aquele do jovem vidrado no monitor, a área de serviço com o varal das toalhas verdes e laranjas, aquele que só se via o borrão da lâmpada pelo vidro escurecido. Maria fumava seus cigarros mais saborosos com a bebida, batia as cinzas num cinzeirinho de alumínio que a antiga moradora deixara ali.
Maria não tem fome, sempre ansiosa com o próprio destino distante. Fraca com a bebida, fato que nunca a envergonhara e nem reclamara, algumas músicas mais tarde e Maria já estava tonta, media o tempo pelas músicas, quando media. Se levantou para dançar um pouco, como uma bailarina balançava os braços inteiros, as mãos, como de maestro, armadas, o corpo serpenteava no ritmo musical, lentamente Maria ía de um lado para o outro com os olhos fechados no escuro. Acendeu outro cigarro e entre uma golada e outra via a brasa riscar a escuridão no mesmo movimento de seu corpo desperto no mistério da noite solitária. Maria já havia passado da metade da garrafa e começava a confundir as coisas. Ela mesma, a cadeira, o piso, o apartamento, o prédio, a vida lá fora, Maria andava descalça sem rumo, sem destino, se esfregando nas paredes num impulso de lambê-las com a língua seca, sem palavra, sem a quem dirigi-las. Maria olhava tudo o que podia de perto, analisando descobria que a textura das coisas era do que as coisas eram feitas, seus pedacinhos irregulares comprimidos pela união da singularidade das coisas. O tecido do sofá era milhões de finas linhas entrelaçadas que deixavam buracos numa proporção maior que a própria superfície vista de perto. As paredes eram na verdade uma casca dura e opaca com saliências e vales, grãos de areia que a tinta cobriu eram como espinhas pontudas; em certos lugares a tinta branca já descascava e deixava à mostra o tecido vivo e feio do prédio. A televisão que era peças de plástico encaixadas, frágeis e negligenciadas como se tivessem sido destacadas de uma cartela. Todo pedaço de ferro já era enferrujado e as folhas brancas já estavam marcadas do que se escreveu por cima. Maria se alarmava pois a virgindade de tudo já havia sido explorada, fuçada e largada a decadência de beata; abraçou a parede mas a única resposta que obteve foi o frio que lhe beijava a bochecha e não cedia pois vinham da raíz mais profunda do prédio na terra. A matéria exata da noite lhe caía sobre os ombros, mas se as coisas se mostravam tão límpidas era dever de Maria julgá-las, e aí confundia ao inspirar o vento que percorria o apartamento de janelas abertas, trazendo até ela novidades na percepção do próprio pensamento. A vida eloquente de bêbada, percebia toda a sua vida como se estivesse sempre embriagada de uma lucidez ferrenha e ditatória, Maria queria ter alguém com quem dançar uma valsa em comemoração ao triunfo de uma certeza vibrante cujo assunto era desnecessário salientar por isso mesmo tinha-se certeza porque nada era resolvido mas não era mesmo importante que o fosse - o importante era dançar a valsa manca de um par.
Maria fora para cama com uma garrafa de cerveja, batia a cinza do cigarro na mesinha de cabeceira, que alojava um telefone e folhas A3 empilhadas cheias de desenhos de bêbada e da faculdade. Maria dormiu de braços abertos, sem se cobrir, com o travesseiro entre as pernas. A alegria íntima estava justificada e o amor impessoal tivera seu significado. Maria roncava morta e acordaria com olheiras de quando fosse defunto. Maria atingira o triunfo necessário daquele dia, espremera a noite até que não restasse estrela e se escondeu segura no esquecimento de si mesma ao sonhar a noite toda um sonho que não recordaria ao despertar.

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6.6.09

Maria VII

Dez horas da manhã. O despertador do celular toca, Maria estende o braço até a cabeceira e aperta o botão para "modo soneca". A cena se repete sete vezes, sem serem contadas, em intervalos de dez minutos. Maria levantou, ligou o som que começou de onde havia parado na noite anterior, despiu-se, e nua afrontou o espelho do banheiro. Maria era bonita, cabelos castanhos longos e lisos, os olhos vivos. Olhou olho no olho, depois mais de perto debruçada sobre a pia. Olhou o próprio rosto inspecionando minuciosamente cada poro, do queixo a testa, demorando-se no nariz: espremeu dois cravos. Afastou-se e observou as próprias curvas. Com as mãos Maria levantou os seios e empurrou um contra o outro. O olhar fixo através do espelho naquela realidade absurda que é o reflexo exato sem a distorção do que é pessoal - o espelho impessoal. Maria escovou os dentes com os olhos ainda sobre si. Calma, entrou no boxe minúsculo para um banho quente. Maria tinha calma, observava as formas que lhe mostravam os olhos como quem admira uma beleza natural. Os azulejos ordenadamente separados pela pasta branca endurecida e amarelada, o boxe de plástico fosco com formas em relevo, o alumínio coberto de uma ferrugem alva, a substância de estado indeciso do sabonete pipocando bolhas, o movimento ametódico da água que caia do chuveiro como se viesse do próprio oceano e abraçava toda Maria, a gravidade baixa, era tudo natural. Nesse estado de entorpecência em que Maria mergulhava nas coisas, podia atingir uma glória, uma aleluia própria da ínfima unidade que a milhões de anos perdeu-se na criação. Eram os únicos momentos nos quais Maria era verdadeiramente feliz. A felicidade irrevogável e a compreensão extenuante logo lhe escapavam pois não eram sustentadas por nenhum esforço que não o da própria existência. Mas Maria, quando percebia, queria manter aquela resolução absoluta para todos os problemas do mundo, inclusive os seus. E já não sabia se havia perdido o estado de graça no instante de percebê-lo ou no esforço necessário do seu instinto de sobrevivência.
Maria se vestiu com a primeira roupa a vista que encontrou intocada estendida na cama em que dormiu. A camisa estivera ali estirada talvez por dias sobre a cama de casal que era toda de Maria, a outra metade da cama pertencia ao que largava ali quando se cansava de usar. Foram abandonados nessas condições uma calcinha branca, um velho short jeans, um livro de letras pequenas a séculos interrompido pela metade, um caderno de rabiscos e algumas canetas hidro-cor. Maria enfiou um bloco com alguns textos rascunhados na mochila, depois uma caneta, um casaco, o celular, a bolsinha de moedas e notas, e largando as janelas do apartamento abertas como de costume, saiu trancando a porta antes de enfiar por último as chaves no mesmo compartimento que todas as outras coisas. Maria desacompanhada desceu o elevador encarando o espelho, estava hoje especialmente encantada com a sinceridade de tal dispositivo. Mas talvez nem fosse por isso que tanto encarava, fato era que Maria hoje não irreconhecia o que via. E aproveitava.
Térreo. Maria dá no pátio do condomínio de prédios antigos e velhas estocadas cujo único contato com o mundo era prestar queixa da vizinha Maria, especialmente pelo som integralmente ligado em alturas absurdas para seus ouvidos já surdos. Rua. Maria percorre algumas poucas quadras já familiares na enorme cidade estranha e cinematográfica. Maria espera a condução no ponto, um ônibus grande e novo, climatizado e com poltronas fofas de veludo colorido. O ponto, em frente a entrada de um famoso colégio católico frequentado por adolescentes sonhadores e perdidos talvez numa realidade alternativa saída diretamente da novela das seis e dos bolsos do pai freguês. Sempre ali no ponto alguns vendedores de rua com suas barraquinhas que não passam de quatro pernas de madeira que suportam um compensado remendado e recompensado ocultado por debaixo de caixas e caixas das mais variadas guloseimas de diversas marcas e sabores, na maioria balas mentoladas para refrescar o hálito dos adolescentes enamorados ou dos caprichosos. No ponto Maria reconhecia alguns rostos do ônibus, mas nunca chegara mais perto, nunca chegaria, aliás, a sequer conhecê-los. Pois no ônibus Maria entrava e sentava-se sozinha torcendo para ter as duas poltronas livres para se esticar na leitura de um ou dois contos que deveriam ser suficientes para fazê-la viajar por todo o percurso. Nessa época Maria já não mais familiarizava com o mundo real, ou talvez, como ela própria pensava, se familiarizava demais, pois sentia correr na veia o mesmo sangue escuro de sombra daquele que todo ser vivo sangrava. Maria era tão viva que às vezes não se encontrava no estado desperto onde o tempo desenrolava no mundo cotidiano dos detalhes que esvaecem na repetição.

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