27.6.07

Graça I

Quando ía a algum lugar Graça sempre resolvia: iria caminhando. Quando Graça caminhava na rua olhava bem dentro dos olhos que cruzava. Graça adivinhava, num lampejo de sanidade, a vida tão bem guardada por debaixo da pele que ao olhar de Graça inquietava-se, pois a pele nua perdia o movimento treinado e automático, para mover as pernas e o pescoço de forma artificial, calculada em tempo real. Invasora da privacidade, Graça não ligava para o pudor municipal! Mas Graça nem gostava tanto das pessoas. Fazia olhar por força de um instinto solidário que não sabia de onde vinha tanta bondade. Graça gostava mesmo era de olhar da calçada para dentro de casas, de bisbilhotar minunciosamente as paredes retas e descoloridas. A madeira velha cuja cuja pintura descascava. Em toda casa Graça via seus anos de glória e decadência, se perdia e já nem sabia qual era o presente. Graça amava! Ao passo que se uma pessoa revelava a Graça uma vida, a visão de uma casa descortinava a vida de toda uma família. Gostava das casas mais antigas, nessas podia pressentir gerações passadas. Os puxadinhos, os sobrados, era riqueza para Graça toda aquela multiplicidade unificada e comprimida. Para Graça, fazer o mesmo caminho na calçada do outro lado da rua já era nova aventura, nova vida palpitante. Graça vislumbra novo universo nas janelas abertas, nas portas entreabertas e nos portões fechados. A visão, estava para Graça, aberta. Certa opacidade nas coisas era para Graça um sinal cujo significado era determinado no exato momento em que capturava. Dez passos a frente Graça desvencilhava daquela vida para novamente afundar na felicidade e tragédia da próxima família. Havia uma casa na qual, sempre na hora do almoço, uma senhora sentada em sua cadeira de balanço a assistir a tevê do outro lado da sala. Como Graça sabia! Dos filhos, dos netos: um na faculdade, outro no exterior - a senhora pensava, Graça pensava.
O dom de Graça é adivinhar o que há de mais ordinário em cada um. Graça sabe do que somos feitos. Mas Graça também herdara de Deus o poder da criação, quer seja o que restou desse poder depois de gasto na criação. E Graça frustrada pela impotência do poder teria de reinventar o que era tão verdadeiro, tão certo, que não importaria se não fosse aquilo que de fato fosse. Bastava a Graça ela mesma ser, e bença!

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10.6.07

No Fundo

- Leonardo Assaf

No fundo sempre resta,
da panela o almoço de hoje
o que pode ser aproveitado mais tarde
se a vontade for a mesma

No fundo sempre resta
da garrafa de pinga, uns três dedos
que amanhã me leva o cansaço embora.

No fundo sempre resta
de uma música guardada na memória
que enriqueça de delírio um momento
dedicado a mim.

No fundo sempre resta
da insonia, a solidão necessária
pra pensar que o pouco que sobrou
pudesse preencher o muito que faltava.