27.5.10

Quem vive busca

A vida as vezes não tem chão
e se tem chão as vezes não dá pé
quando dá pé não dá pra respirar
A vida escapa
a gente tem que prender a respiração pra viver
porque a superfície não é a vida, a superfície é o que acontece porque a vida existe

A vida é um pedaço de papel em nossas mãos
e se a gente aperta, amassa a vida
mas se não agarramos firme o vento leva,
a vida venta, estamos em movimento

A vida só é vida em movimento
a vida parada é o oposto da vida
a vida é o fôlego que se toma pra viver
a vida é o fôlego necessário para a atenção que a vida exige.

A vida acaba onde a vida começa
tudo o que existe é vida
a vida é a suspeita que se tem dos sentidos
em sonho é quando estamos mais atentos à vida
a vida somos nós
inventamos a vida

A vida cansa,
a vida acontece quando lembramos
a vida é uma lembrança

Pra viver é necessário prender a respiração
Perceber a vida requer urgência

A vida ofusca a vista
e a gente vive com o tato
e não vê a vida
a vida está ao alcance

Quem busca vive

25.5.10

Ana V

Ana estava à beira. Mais um pouco em direção e talvez nem fosse mais ela mesma. Ana estava certa, olhou para baixo e se rendera à vertigem de ver as coisas como queria. Ana percebeu que qualquer trabalho seria em vão. Poderia descansar, era satisfeita porque o esforço de entender não era mais necessário. Porém em troca, recebera o abismo. Não estava em cima do muro, não era uma decisão, só havia o precipício no qual em sua barriga pressentia cair. Era o princípio do que desconfiava ser um sentimento de que fazia certo. Ana estenderia a mão e alcançaria o mundo, compactuando silenciosamente com a ordem e a ética. Aprendera a responder com o sinal secreto dos que sabem. Ana trabalhara a dádiva de entender o mundo, e isso trouxera-lhe a paz, a busca terminara. Mas na mesma proporção a dúvida crescia em seu ventre, sorrateira e vulgar. Dúvida que não sabia qual era, como se quisesse saber mais. A dúvida era maior, era do tamanho da certeza que tinha. E por razões óbvias não sabia o que não sabia. Mas Ana estava no auge e era como se tivesse esquecido.
Ana queria caber dentro do próprio peito aberto, do coração grande e não entendia as pessoas, salada e jantar. Ana não cabia nela mesma, e não entendia o que isto queria dizer, sala de jantar. Ana não havia pedido por um mundo complexo, Ana pediu a salada, já passara da fase do hábito de reclamar do que é vital, suco de goiaba. Ana transbordara, não reclamou, pois estava de bem, pois estava ciente, não entendia, mas aceitava. Ana conformada? Estaria madura? o suficiente para a vida? Não, Ana era exatamente a mesma, achava as mesmas coisas, mantinha as mesmas frases que julgava verdades. Mas Ana adquirira nova postura: viveria a vida para a vida. Sua vida seria parte da vida do mundo, seria ela parte de uma população, de uma família, de um círculo, de uma unidade maior. Ana fazia parte. Com coragem, deixara a vaidade da solidão de lado, o luxo do sofrimento calado. Ana, a duras penas, admitia que não era ela somente a portadora dos seus pensamentos, porque os outros também pensavam as mesmas coisas. Por que não iria Ana ceder ao mundo o que já é por direito do mundo. Ana já era do mundo, e talvez o fato que a tornara tão reclusa fora perceber isso, com susto e vergonha de quem é descoberta - perceber que ela era reconhecida por ser igual. Mas ainda era pouco, o sangue que corria, o molho de tomate sobre o macarrão na mesa de jantar, o óleo que dá o movimento à vida humana, o sentimento palpitante de vida, o ímpeto primeiro, a vontade cega, o animal que Ana friamente percebe dentro de si a sugerir um mundo próprio em resposta - era isso que seria ultimato para a vida solitária. A mesma vontade de ir em frente não importando como fosse, que causara a cegueira, iluminava agora as coisas como elas eram. Até ali. Pois segundo a experiência de Ana, as coisas são o que são no ponto em que se vê, e nele somente, até ali, e não mais.

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