9.4.06


Já não importa
a falta
já não importa
a porta
já não importa
a comporta
que segura sua ira
o comportamento lamento lento
do apartamento morto
sem janelas
já não importa
a horta da hortelã
a escada de incêndio
do meu peito em chamas
já não importa
a infância fechada
a ferida aberta
que nunca cicatriza
a brase acesa do cigarro aceso
queimando eternamente
a minha carne
mas ainda assim...
já não importa
já não importa
a presença
a sentença
o que me importa
é esse não me importar constante
a estante
o instante
o segundo/ o primeiro
quero ser o último da sala
de jantar
o último da fila da repartição
o último a morder o pão
nosso de cada dia
e o primeiro a morder sua bochecha
chocha cheia de fumaça
verde pálido
mas mesmo assim
já não interessa
a pressa
não importa
o salário
o mendigo morto
a baba , afogado no mar de merda
já não importa a falta que o travesseiro me faz
já não me importa sua cara de bronze
seu cu fedorento
que peida escondido
a careta que eu faço no espelho
já não tem graça nenhuma
não importa o que eu quero
é estar presente
no dia e na hora
no minuto e no segundo
e no lugar que eu peidar em sua presença.

- Raul Seixas, 1968.

7.4.06

Ana III


ah Ana!
você poderia ser tão mais bonita
e não vá se explicar
poderia tanto ser mais feia
Ana - é tudo que vale ser?
quem melhor que você pra dizer
que vive de apalpar degustar e mutar
mais que isso: de se aproveitar
oh Ana!
assassina de deus
antes das primeiras horas da manhã
de alguma divisão dos dias
que é o tempo?
Ana achava
é o quanto dura pra ser
ser é duro
já está enjoada? repeteco
então espera até anoitecer

não demora muito no provador
e madame Ana saía de guarda roupa novo
Ana não dava rodeios
achava aliás brega demais
Ana entrava por uma porta
e a saída seria sair por outra
Ana achava
que janelas serviriam - se não tivessem grades
então se policiava pra não criticar
para os outros ser os outros já era o erro
suficiente para que toda falha se justificasse
Ana é quem?
se as águas fossem muito salgadas
Ana boiaria - Ana era vaca

incansável Ana
ou insistente? em tentar
parecia até malícia o que tinha furado na língua
aceitava parcialidades - personalidades
era fácil
sem ter que explicar a paz
que tem uma felicidade nômade
e a marca de quem quer
Ana achava
mas às vezes o bem querer
é reconfortante
quem é Ana?

umas horas
outras horas
teria a graça ter alguma coisa a ver com Ana
senão a solidão seria em dobro
não ter as palavras era por não ter a quem dizê-las
mas no banho Ana cantava o mundo com louvor
ou Ana não cantava
ou Ana ensaiava
e enjoava de repetir
então tentava

'um belo vício
um pular da janela
carros passando rápido
e aqueles engarrafados
territórios disputados
e a veemência de crente
no grau de miopia da fé
envelhecer
desenlouquecer'

e só isso já era a liberdade atrevida
exclusiva de Ana - que seria
por até quando topasse nos pontos de farsa
e reconhecesse Ana mesma no peão
que não poderia mais sustentar

Ana descobria que fora descoberta
por peregrinos agora iguais
que por ser crime - calariam
era muito primitivo
e Ana teria de purificar-se
como se andar descalça de novo
fosse evoluir para o simples e bonito
até que tudo mais numa evolução maior
estiver emperequetado aos extremos da mentira

Ana não consiguia se segurar:
quem era Ana?
e ao invés de erguer a mão em dúvida
levava a mão à face e tateava
Ana tinha medo de olhar pro lado
e ver espelhos
e sem palavras não se reconhecer
que faria então?
que não fosse reproduzir
seria a única coisa que lhe restara:
se produzir

Ana iria precisar de um público
iria precisar de uma bajulice
e de toda experiência do saltimbanco
para manobrar a estadia
que tem uma sobrevivente do tempo
em zona franca da vida
Ana ao meio-dia saberia tudo
para esquecer a meia-noite
quem é, Ela?

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