24.3.06

O Futuro


Aos domingos, iremos ao jardim.
Entediados, em grupos familiares,
Aos pares,
Dando-nos ares
De pessoas invulgares,
Aos domingos iremos ao jardim.
Diremos, nos encontros casuais
Com outros clãs iguais,
Banalidades rituais,
Fundamentais.
Autómatos afins,
Misto de serafins
Sociais
E de standardizados mandarins,
Teremos preconceitos e pruridos,
Produtos recebidos
Na herança
De certos caracteres adquiridos.
Falaremos do tempo,
Do que foi, do que já houve...
E sendo já então
Por tradição
E formação
Antiburgueses
- Solidamente antiburgueses -,
Inquietos falaremos
Da tormenta que passa
E seus desvarios.
Seremos aos domingos, no jardim,
Reaccionários.

- de Reinaldo Ferreira, copiado do blog do Elcio Domingues.

23.3.06


Me pede, aos sussurros, o amor - que é pra não correr o risco
Aplica, em mim, o beijo ligeiro: a picada indolor
Enquanto durar o tempo de um clandestino afago
Antes de haver a solidão no tumulto das coisas em fatos
Roubaremos a confissão de deus quanto ao que é
Despontou o sentido esquadrinhado que vem primeiro
É a vida: rapsódia efêmera, cantada em hiperurbanismos
Que quando formos pegos cruzaremos no olhar o riso
Da ciência que teremos de que somos ladinos
de toda a graça do mundo: não haverá castigo
digno de castigo, para nós indignos de mitos
Haverá inveja de nossos amigos e de nossos pais
não mais seremos filhos

13.3.06

Ana II


Ana pintara o cabelo sem saber qual a cor da tinta
e dera ao mundo novas delimitações
Ana se expandia ao cumprir sua própria vontade
não se sabe quem ensinara Ana
mas achava aquilo
que sê-la seria tirar nela aquilo que pertencia ao mundo
seria moda e seria autenticidade
Ana não sabia que era tudo a mesma coisa
eram escolhas que não tinham a ver com valer a pena
tinham que ver o novo - a rebeldade

Ana se desfazia do mundo aos poucos
e era tão charmosa que parecia reconstruí-lo
Ana nunca ligara realmente para a validade das coisas que se inventava
pra Ana tudo parecia ser um pouco quase muito
a fumaça do seu cigarro era a vida bonita
a parte da vida que é admirável
e só serve pra isso
Ana achava que se houvesse um só caminho
poderia esbarrar em tudo
e seria talvez viver de verdade

Ana andava na vertical e na horizontal
já desconfiava que era questão de pontos de vista
porque Ana sempre achava
tudo logo embaixo do seu nariz
quando olhava de volta
após trocar de lugar
será que Ana vai perceber?
o quanto faltava pra ser amor
o quanto ía sobrar
:um pouco quase muito

se Ana fosse durmir tarde
acordaria tarde porque queria
era assim que Ana com desculpas
controlava a solidão de quem não tem tempo pra se acostumar
nunca seria tarde demais pra Ana
pois procurar ajuda era perder a originalidade
era se acostumar através dos outros
Ana achava
que os outros costumavam tentar
porque já era tarde demais pra ainda ser quem eram
era tudo classificação por fase

mas Ana não
Ana tinha o abono da alvorada
como se fosse coisa nova
e Ana estivesse descobrindo
que o dia não nascia do nada
consumia o crepúsculo e entorpecia
dopada de frenesi pela curiosidade
por saber como se compreendia
ali - no mesmo lugar de antes
mas em outro planeta
Ana achava
que não podia fazer muito caso
senão os outros iriam saber
sua uberdade era só sua
e quando achasse toda a liberdade
que era sua e estava perdida
Ana se limitaria a não poder ter mais
e nem deixar de ter

o mundo delimitado
ao redor de Ana seria um mundo que faria sentido
se a solidão fosse o preço a pagar
Ana nunca saberia ao certo o que sacrificou
Ana achava
que a salvação era sobreviver sendo ela mesma
ou o que achasse que deveria ela mesma ser
o mundo que Ana defenestrara criara grades em sua própria janela

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