20.8.05

Ignorância segura

Pra quem souber dar as mãos
Pra quem sabe dançar uma ciranda
Pra quem dá duas braçadas sem respirar
Pr'aquele que acha saber natação
Pr'aquele que só de ver perde o fôlego
e no entanto recusaria a cegueira

Pra quem já serviu de intermédio
Pra quem envaidece por nunca ter precisado
Pra quem nunca foi preciso o suficiente
Pra quem nunca fora impreciso a ponto do erro
Pra quem já chutou o balde
e ainda não bateu as botas

Pra quem mudou de opinião sobre o que é ser melhor
Pra quem descobriu tantas vezes seguidas o segredo de comparar
Pra quem graças a deus descobriu que a fé é tudo
é tudo um delírio só

Pra quem sabia como estas linhas
Pra quem achou no fim teria uma resposta
Pra quem sabia que no fim daqui diria:
pra ti, pra mim, pra nós

Mas é para aquele que desconfiava
Presumia que era uma piada
Mas se não o fosse, aquele gargalharia
Pr'quele que esteve sempre certo
Pr'quele que sabia
que não presumia a coisa certa

“Alma minha, ensinei-te a dizer “hoje”, como “um dia” e “noutro tempo” e a passar dançando por cima de tudo aqui, acolá e além.

Alma minha, livrei-te de todos os recantos; afastei de ti o pó, as aranhas e a obscuridade.

Alma minha, lavei-te do mesquinho pudor e da virtude meticulosa, e habituei-te a estar nua ante os olhos do sol.

Com a tempestade que se chama “espírito” soprei sobre o teu mar revolto e expulsei dele todas as nuvens e até estrangulei o estrangulador que se chama “pecado”.

Alma minha, dei-te o direito de dizer “não” como a tempestade, e de dizer “sim” como o céu límpido: agora estás serena como a luz e passas através das tempestades.

Alma minha, restituí-te a liberdade sobre o que está criado e por criar; e quem como tu conhece a volutuosidade do futuro?

Alma minha, ensinei-te o desprezo que não vem como o caruncho, o grande desprezo amante que onde mais despreza mais ama.

Alma minha, ensinei-te a persuadir de tal modo; que as próprias coisas se te rendem: tal como o sol que persuade o próprio mar a erguer-se à sua altura.

Alma minha, afastei de ti toda a obediência, toda a genuflexão e todo o servilismo; eu mesmo te dei o nome de “trégua de misérias” e de “destino”.

Alma minha, dei-te nomes novos e vistosos brinquedos, chamei-te “destino” e “circunferência das circunferências”, e “centro do tempo” e “abóbada cerúlea”.

Alma minha, dei a beber ao teu domínio terrestre toda a sabedoria, já os vinhos novos, já os mais raros e fortes da sabedoria, os de tempo imemorial.

Alma minha, derramei em ti todo o sol e toda a noite, todos os silêncios e todos os anelos: cresceste então para mim como uma vida.

Alma minha, agora estás aí, repleta e pesada, como vide de cheios úberes, de dourados cachos exuberantes; exuberante e oprimida de ventura, esperando entre a abundância e envergonhada da sua expectação.

Alma minha, agora já não há em parte alguma alma mais amante, mais ampla e compreensiva! Onde estariam o futuro e o passado mais perto um do outro do que em ti?

Alma minha, dei-te tudo, por ti esvasiei as mãos... e agora! Agora dizes-me sorrindo, cheia de melancolia: “Qual de nós dois deve agradecer?”

Não é o doador que deve estar agradecido àquele que houve por bem aceitar?

Não será uma necessidade o dar? Não será... pena aceitar?

Alma minha, compreendo o sorriso da tua melancolia: a tua exuberância estende agora as mãos anelantes!

A tua plenitude dirige os seus olhares aos mares rugidores, busca e aguarda: o desejo infinito da plenitude lança um olhar através do céu sorridente dos teus olhos!

E na verdade, alma minha, quem te veria o sorriso sem se desfazer em lágrimas?

Os próprios anjos prorrompem em pranto vendo a excessiva bondade do teu sorriso.

A tua bondade, a tua bondade demasiado grande, não se quer lastimar nem chorar, e, contudo, alma minha, o teu sorriso deseja as lágrimas, e a tua trêmula boca os soluços.

“Não será todo o pranto uma queixa, e toda a queixa uma acusação?” Assim dizes contigo, e por isso preferes sorrir, alma minha, a derramar a tua pena, a derramar em torrentes de lágrimas toda a pena que te causa a tua plenitude e toda a ansiedade que faz que a vinha suspire pelo vindimador e pelo podão do vindimador.

Se não queres chorar, porém, chorar até o fim a tua purpúrea melancolia, precisas cantar, alma minha. – Já vês: eu, que predico isto, eu mesmo sorrio. – Precisas cantar com voz dolente, até os mares ficarem silenciosos para escutar o teu grande anelo.

Até que em anelantes e silenciosos mares se balouce o barco, a dourada maravilha, em torno de cujo ouro se agitam todas as coisas boas, más e maravilhosas, e muitos animais grandes e pequenos, e tudo quanto possui pernas leves e maravilhosas para poder correr por caminhos de violetas até à áurea maravilha, até à barca voluntária e até ao seu dono.

Ele é, porém, o grande vindimador que espera com a sua podadeira de diamante, o teu grande libertador, alma minha, o inefável... para quem só os cantos do futuro sabem encontrar nomes. E na verdade, já o teu hálito tem o perfume dos cantos do futuro, já ardes e sonhas, já a tua sede bebe em todos os poços consoladores de graves ecos, já a tua melancolia descansa na beatitude dos cantos do futuro!

Alma minha, dei-te tudo, até o meu último bem, e as minhas mãos por ti se esvaziaram: ter-te dito que cantasses foi o meu último dom.

Disse-te que cantasses. Fala, portanto, fala: qual de nós dois deve agora agradecer? Mas não; canta para mim, canta, alma minha! E deixa-me agradecer-te!”

Assim falava Zaratustra em A Grande Nostalgia

16.8.05

"Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,
Mas tudo ou sobrou ou foi pouco - não sei qual - e eu sofri.
Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,
E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse,
Amei e odiei como toda a gente,
Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,
E para mim foi sempre a exceção, o choque, a válvula, o espasmo."
de Passagem das horas, Álvaro de Campos


Então tá
Presta atenção no renascer

Prelúdio:
Descobre-se sobre a tipografia na qual o mundo é
Não transcrito, mas lido
É assim - a beleza está nos olhos de quem lê
E muito mais
E a qualidade
E a adiantabilidade (que deveria ser escrita com 'm')

Pronto:
Quando acordar e durmir
Eu tenho que aprender a fazer isso
E dizer não frases prontas mas palavras prontas
E sente dor e futilidades
E ao fazer isso
Prepara-se para ser despreparado
Durante e ao longo
Do caminho

E irá para o céu:
E o ateu irá para o céu
E pra te falar falar a verdade
Você não sabe o que eu vi
Era de verdade, desse tamanho todo
E depois de um tempo
E depois de um tempo
E depois de um tempo
Eu já não tenho tanta certeza
De nada
Ao menos antes
Eu tinha

11.8.05

Somente saberá, mas não é o que pensas

Então tá, está tudo muito bem
Tudo muito a vontade
Nem sei se foi o álcool ou o remédio (ou os dois)
Importa que minha dor de cabeça passou
Talvez tenha sido o churrasco me tirando o tédio
E então tudo passou
E então agora uma vontade d'uma brincadeira fácil demais
Que nego vagarosamente vaidosamente
Porque vaidade é separar uma vaga rosa
Que entope a mente daquele que a terá
E a semente dessa rosa nele brotará em paz
Sem dor de cabeça
Então tá, está tudo muito bem
A vontade não é mais tudo
Já tudo, não mais, poderia eu ser
Não sem voltar atrás - tão impossível quanto tudo
Melhor dizendo: impossível demais
Em redenção minha absolção dirá:
Pouco, muito, demenos, demais destorna o absoluto
Não é mais cem por cento
Taxa zero, tarifa débito e juros
Então tá, está tudo muito bem
Se não der eu aguento
Se não der acaba bem
Se der
Se desse?
Se desce?

9.8.05

Ninguém chora pela primeira vez
Quero ser tudo
Minha repetição é um ritmo em colapso
Porque se há algo a mais
É só mais um de nós fora de moda
Ninguém se esforça pra ver
Ou então é fé, e é só por desalento
Mais uma vez