Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. Tempo de absoluta depuração. Tempo em que não se diz mais: meu amor. Porque o amor resultou inútil. E os olhos não choram. E as mãos tecem apenas o rude trabalho. E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás. Ficaste sozinho, a luz apagou-se, mas na sombra teus olhos resplandecem enormes. És todo certeza, já não sabes sofrer. E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice? Teus ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança. As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida prossege e nem todos se libertaram ainda. Alguns, achando bárbaro o espetáculo, prefeririam (os delicados) morrer. Chegou um tempo em que não adianta morrer. Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. A vida apenas, sem mistificação.
a que ponto há de chegarmos antes daquele que expectante deveríamos consentindo e anestesiados pelo mar gelado amordaçados, não aguentarmos mais! a palavra presa na garganta exprimindo completos diagramas preenchidos para nos enquadrar a essas pessoas que vivem sempre a vulgarmente prestar contas
poderia muito exagerar à beça e pôr nas arestas dessa palavra-peça plurais, aumentativos e superlativos achados com audácia num dicionário encardido que tanto esperava na estante por esse instante de ignorância
ah! se não somos seres milagrosamente vivos repetindo frases e saberes convencionados tateando sós no escuro entupido a repetir mais uma vez esperançosos para responder com a medida absoluta de conotação extensa e prazo vitalício a um eventual vazio vício que nos leve, só, a mais uma fuga
queria fazer borboletas e borboletas voarem dando piruetas queria inventar formas e pôr em flores
queria não ter de pintar eu que pinto mal se quizesse explicar nuvens em inusitadas cores
queria eu tudo que penso idealizo, esquematizo se tornasse real além de mim mesmo
que eu crio e não vale será que vale só de estar feito aqui? dentro não sei de quê
como o milagre sem consciência sem urgência e aleatório se fez não só palpável mas tão adimirável e nós - inventores de engrenagens e milhagens de deuses cuja imagem nos espelha em nossa cidade somos impotentes diante de nossos próprios sonhos como se fosse necessidade vital da esperança não se poder alcançá-la como nossos deuses como nós mesmos
- poema de Brasigóis Felício Pode ser que seja agora, ou não será jamais. Provavelmente está muito longe o instante do prazer vital. Enquanto não suceder este supremo acontecimento em nossas vidas flagradas, e não explodir o milagre nos gestos plenos e gastos, jamais teremos orgasmos completos. E ao invés de Ser profundos, como o que os olhos vêem, uma vez libertos, somos de câncer ou de capricórnio. Quando seremos mais vastos que nós mesmos? Esse destino trágico de nor(destinados): amarras do amor morto no gozo.
E para o amor fomos feitos: por isto nascemos das mulheres e depois disso só houveram febres, e sentimentos. É nosso destino beber das tempestades. Impotentes para o amor em nosso peito, para o amor fomos feitos: morrer no desejo com esse nó no peito.
E mais os ossos, sêmens, intestinos, medo e bazófia e perdas e degredos e os milhões de cadáveres de que somos feitos.
Ah! Esta hora miraculosa. Não foi à toa que sobrevivi a tantos desastres. Do mesmo modo que Pessoa, eu fico sempre à margem de qualquer combate. Campeão sexual, herói para mim mesmo sonhando, amante insabido de todas as mulheres do mundo, eu venho gritando essas palavras como um mudo e se de alguma força me alimento é dessa espera de milênios que me leva. Mas não. Permaneço à margem de mim mesmo, com medo de fitar a imensa face do meu Ser multiplicado.