8.8.10

Maria XI


Maria olhava a chuva cair, quase poético, que Maria pensava? Quase patético! Maria não pensava em nada, se parasse para ver, tinha um problema ou outro, certo, mas tão normal, tinha suas coisas e lá vai. Ía assim, como se sabe por experiência própria - ía Maria, ela e a experiência dela, no sentido de experiência não experimentada, só vivida, pouco vívida, pouco sentida, mais lembrada, salubre; solitária, talvez, não além da conta. Maria e o escárnio secular filosófico sobre a vida de formiga de Maria e suas amigas. Ela, o termo pejorativo filosofia e o vocabulário hermético dessa modernidade viúva do tempo, eterno até o surgimento da palavra em tentativa de descrevê-lo como tal. Bom, o que não é nada bom é que Maria não funcionava assim; sua visão fascinada sobre as coisas simplesmente existirem estava entre o espetacular e o fantástico. No bar: - Esse papo de religião, revia Nina o assunto ensaiado. Eu acredito em alguma coisa sim. Não nesse deus (católico apostólico romano), mas em alguma coisa que tenha criado isso tudo, e preza por nós, e faz as coisas acontecerem, conclui emocionada. Acho que deus é todas as coisas, aprimorou Joana. Maria, longe repassava mentalmente a associação entre seus neurônios, instigada mesmo sem prestar atenção. Tudo bem, admitia o absurdo que era a existência simplesmente do nada. Então deus criara tudo. Mas quem criara deus? e simples assim invalidara milênios e civilizações interiras de teóricos refutados por uma lei absoluta - a matemática. Então sim, tudo sempre existiu: absurdo! E Maria sentia arrepiada a espinha entortar. Como? Como era absurdo tudo simplesmente existir; mas por que tudo simplesmente não existia? Não seria tão mais fácil nada haver? Mas as coisas haviam e Maria havia alcançado o estado de graça por deter durante alguns poucos segundos a sabedoria sobre o absurdo que é o mundo escondido bem debaixo de seus olhos. Então tudo existia e pronto! Desde o big bang quando antes nada havia pois era o início do tempo - e o fim de outro. E se Maria era pagã, Maria pecava, Maria pagava, Maria pagaria no céu. Porque era ela sentada na janela vendo a chuva cair, cantando rouca o que vinha à tona. Sabia utilizar da penitência para benefício próprio. E como era boa Maria, ali, sem exigir nada do mundo, nenhuma verdade maior, resolvendo-se em olhares desfocados. Experimentando sozinha o sentido genérico do mundo e quem a entendesse seria o seu amor. Pois seria tão fácil se comunicar através das formas de uma bromélia molhada na vida aflita do espinho de cacto que é sua folha pulsante de ancestralidade subentendida, Maria e as coisas que abriram mão da beleza em prol da sobrevivência, como ela mesma, compreendida e ajustada à solidão. As coisas vivas que continuam vivas justamente por terem recusado uma vida maior, a vida entendia de si mesma, vida sobrenatural. Maria dependia! Dependia ser Maria. Podia até ser que fosse, mas dependia Maria. Dependia ela própria da causa e fonte da vida. E se desprendia cedia ao instinto de agonia da vida certa, dia após dia às custas da epifania animal. Acabou que Maria foi desgraçar em vida cotidiana e feliz. Que diabos, aconteceu! Foi que foi acontecendo e enfim Maria percebeu, ou será que só pressentiu e nada aconteceu, sentiu o começo e o fim antes do começo, Maria estava na parte do ciclo em que as engrenagens descompassam e o mundo se acomoda num solavanco discreto e habitual. Por que Maria precisava disso? Por que? Porque era ela que foi ter do mesmo que causara. Que maldição crônica era aquela que a causava com se fosse ela mesma o abrigo, o abraço, o espinho, o aperto. Maria experimentou do acaso, experimentou ser ela mesma vítima dos seus tratos. E com ela mesma não podia lutar! Como era sem força sua vontade, sem controle, como estava Maria a mercê de outra pessoa e se reconhecia sendo o que a milhares de anos conheceu como o que tanto um dia dependia de Maria, vivia Maria, e Maria se sentia parte da própria vida, como se fosse vivida não por ela mesma. Maria sabia que não somos feitos para ver. Se fôssemos veríamos! Mas talvez sejamos nós os futuros criadores desses artificiais despertos. Mas há uma limitação que nenhum de nós há de superar: o universo só pode ser explicado a partir do próprio universo. Toda linguagem é metalinguística e daí a falha. Podia Maria apenas pressentir a explicação. Como se a tivessem roubado, Maria furtada. Então o que lhe tomava os pensamentos era: o que não poderiam tirar de Maria, um prazer fugitivo em passatempo misto e fugaz. Bom, era que tudo se experimentava e era tudo tão jovem e promissor e havia a música e a emoção de um momento detentor do mundo e amigos enfim amigos que relembram. Que poderia então Maria? para sentir provida - Maria e o que era só seu. Tão exagerados, tão extremos; as palavras que usavam eram esboços de uma revolta máxima, deficiente de pudor humano, eficientemente sobre-humanos, resistentes. O que Maria julgava somente ela capaz de profetizar, verdade fria e estéril, bendita. Se Maria brigava era porque queria certa intensidade e se levantava contra como ultimo recurso desesperado de uma força instintiva e carente. Era isto a salvação de Maria. Fé assustadoramente febril e cega, devotada e burra. Mas se não era essa também a própria Maria: o ser inadimplente com a esperança alheia, a sua, a espeança de Maria, não se chamava esperança e era assim. Maria salva pelo gongo, possivelmente arrependida. Que na verdade a inspiração era simples e banal. Que na verdade o que era em Maria especial era redundância fugaz que nada redundava mas sempre por enganar acabava, um convencer, que depois de tantas voltas não sabia mais de onde vinha e Maria aceitava o que já não sabia o que era: o seu inverso maquiavélico justificável, sua personagem e seu futuro no mesmo presente em que cabia. As plantas no hall não tinham flores, planta pobre, ar molhado. Maria, no entanto, pendia e como pêndulo dependia e novamente repetia o lado e pendia - Maria era assim: precisava de mais segurança se fosse saltar no abismo. E quanta raiva acumulou Maria, ela que tão boa, fora ter raiva de quem a amava pois sem saber Maria saltara e sofria por não mais estar em suas próprias mãos, mas era o abismo e não estava nas mãos de ninguém e não havia volta. Se porventura houvesse fundo Maria estaria ferida desde já, abatida e com raiva por não saber. Quem daria a Maria a segurança? quem cederia a Maria a própria segurança em troca de quê? da segurança de Maria. Mutuamente segurando-se. Maria então pendia, não era completa a segurança, não era completo o salto, não era completa Maria! Era isso? Maria queria então ser completa, e o que levaria para ser? se um dia decidira-se por ser. Ser ela mesma não bastava? bastava! não bastava era ser somente ela mesma, não bastava que somente ela fosse ela mesma, não bastava que o mundo girasse, não bastava a imensidão do desconhecido e não bastava o universo grande. Bastava o inverso: o dia pobre, o estresse, o esquecimento, o dever diário e a falta de expectativa febril que tem os pais como amantes e sua nostalgia de velhos. Quase uma doença! Pelo fato de ser da cabeça julga-se mal estar, mas ha se não é enfermidade a compulsividade bestial de Maria. A princípio por nada específico. Mas ha se Maria descobre certa noite antes de dormir o jogo no celular, se Maria descobre sem querer a novela que passa sem permissão, se Maria descobre que tudo é fértil a risadas, se Maria porventura descobre o cigarro e estava se vendo numa foto. Se Maria copia e se sente gente, Maria compulsiva como um soluço que se esquece, Maria enjoava, mas enjoava dela mesma. Até Maria se rendia ao Deus. Inclusive ela, que experimentava. Mas não por tentativa, pela própria natureza manifesta em desespero público da angústia. Também da paz na beleza das folhas coloridas e raras flores, presentes. No azul opaco do céu e verde fosco do mar, amar amar. Maria que queria comprar, tudo tão bonito, precisava, ainda precisava, amarga.

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6.8.10

Ana VI


Ana estava carente, quase doente. O problema era do mundo. E Ana sofria da doença redundantemente febril. Ana não tinha muita certeza, queria viver, mas era difícil. Ana tinha que estudar, mas não estudava. Ana tinha que trabalhar, mas não trabalhava. Ana tinha que namorar, mas não queria. Ana precisava do esforço injusto e sem direção que a vida exige. A vida exigia demais, e Ana não trabalhava. Para que? Ana perguntava qual era a razão de ter que fazer o que não queria. Ana perguntava porque precisava tanto, Ana não sabia do que, nem para quem de fato perguntar. Ana sabia o que não queria. Ana não queria nada. E mesmo quando trabalhava era como se não o fizesse, porque a labuta era insensível. Quando estudava não aprendia. Quando namorava não sentia. Não tinha o sentido último que a vida promete. Não tinha a eternidade que a alma confia na vida implicitamente e serve de comprometimento com a realidade. A vida não tem trilha sonora, não recompensava a ousadia que Ana nem tinha. Ana queria poder olhar pela janela e ver uma árvore. Ana queria sair na rua e cruzar com um gato - Ana queria fazer carinho. Mas o ônibus demorava, Ana esperava. A secretaria estava fechada. O professor não ía. O cartório impossível. O banco não abria. O horário do curso não batia. A academia não gostava. O yoga esquecia. E chovia, era tão mais difícil sair de casa. A rua estava tão cheia. Ana não queria olhar no olho hostil da legião vampiresca que era a multidão que surge com o dia. Mas a multidão vivia, e parecia a Ana que ela mesma não, porque por alguma razão, ou sem razão, Ana não fazia parte da multidão. E se fizesse seria tão pior. Ana queria viver na essência das coisas, mas não encontrava. Porque quanto mais fundo mergulhava nas coisas menos entendia, e parecia que estava parada. Seus amigos viviam, e Ana não. Qual futuro teria Ana se não vivia? Um futuro sem passado, vida que sempre existira. Ana dormia. Ana queria alcançar, ser alguém. Ana queria viver dos sentidos, da arte e da harmonia. Mas onde iria chegar com essa mentira, porque era mentira que parecia. Mas Ana sem querer sentia, e como sonho parecia verdade. Sentia que havia escolhido errado a cada escolha passada. Sentia que fizera errado, mas não mudava do instinto materno de optar pela utilidade, mas era sem aplicação para a vida. E que vida era essa? O que seria da vida se não contasse uma história? Ana queria continuar de onde havia parado, mas retomava pelo começo. Ana queria encaixar cada dia no anterior, mas não servia. Ana tentava, mas cada hora que vivia era maior e mais fatal, porque de fato envelhecia. Ana não entendia que o dia de ontem havia durado tanto quanto o dia de hoje duraria, e que era ela a mesma, mas não parecia. Não lembrava que o mesmo sentimento que tinha hoje dizendo que mudara fora a razão de ontem para não ter tido coragem, e aí não tinha a braveza necessária de hoje porque precisava se preparar pra nova vida que teria a partir de amanhã, quando supunha realizar seu futuro de uma só vez. Mas o que seria depois? E de certo não importava, porque de hoje não sobraria nada que pudesse aproveitar amanhã. A preparação era uma prece, e da prece nada sobra. Parecia a Ana que precisava de alguma forma enganar a vida, mas vivendo parecia que a vida não existia, existia Ana e o dia, e viver era o verbo a rimar a vida versada de Ana.

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27.5.10

Quem vive busca

A vida as vezes não tem chão
e se tem chão as vezes não dá pé
quando dá pé não dá pra respirar
A vida escapa
a gente tem que prender a respiração pra viver
porque a superfície não é a vida, a superfície é o que acontece porque a vida existe

A vida é um pedaço de papel em nossas mãos
e se a gente aperta, amassa a vida
mas se não agarramos firme o vento leva,
a vida venta, estamos em movimento

A vida só é vida em movimento
a vida parada é o oposto da vida
a vida é o fôlego que se toma pra viver
a vida é o fôlego necessário para a atenção que a vida exige.

A vida acaba onde a vida começa
tudo o que existe é vida
a vida é a suspeita que se tem dos sentidos
em sonho é quando estamos mais atentos à vida
a vida somos nós
inventamos a vida

A vida cansa,
a vida acontece quando lembramos
a vida é uma lembrança

Pra viver é necessário prender a respiração
Perceber a vida requer urgência

A vida ofusca a vista
e a gente vive com o tato
e não vê a vida
a vida está ao alcance

Quem busca vive

25.5.10

Ana V

Ana estava à beira. Mais um pouco em direção e talvez nem fosse mais ela mesma. Ana estava certa, olhou para baixo e se rendera à vertigem de ver as coisas como queria. Ana percebeu que qualquer trabalho seria em vão. Poderia descansar, era satisfeita porque o esforço de entender não era mais necessário. Porém em troca, recebera o abismo. Não estava em cima do muro, não era uma decisão, só havia o precipício no qual em sua barriga pressentia cair. Era o princípio do que desconfiava ser um sentimento de que fazia certo. Ana estenderia a mão e alcançaria o mundo, compactuando silenciosamente com a ordem e a ética. Aprendera a responder com o sinal secreto dos que sabem. Ana trabalhara a dádiva de entender o mundo, e isso trouxera-lhe a paz, a busca terminara. Mas na mesma proporção a dúvida crescia em seu ventre, sorrateira e vulgar. Dúvida que não sabia qual era, como se quisesse saber mais. A dúvida era maior, era do tamanho da certeza que tinha. E por razões óbvias não sabia o que não sabia. Mas Ana estava no auge e era como se tivesse esquecido.
Ana queria caber dentro do próprio peito aberto, do coração grande e não entendia as pessoas, salada e jantar. Ana não cabia nela mesma, e não entendia o que isto queria dizer, sala de jantar. Ana não havia pedido por um mundo complexo, Ana pediu a salada, já passara da fase do hábito de reclamar do que é vital, suco de goiaba. Ana transbordara, não reclamou, pois estava de bem, pois estava ciente, não entendia, mas aceitava. Ana conformada? Estaria madura? o suficiente para a vida? Não, Ana era exatamente a mesma, achava as mesmas coisas, mantinha as mesmas frases que julgava verdades. Mas Ana adquirira nova postura: viveria a vida para a vida. Sua vida seria parte da vida do mundo, seria ela parte de uma população, de uma família, de um círculo, de uma unidade maior. Ana fazia parte. Com coragem, deixara a vaidade da solidão de lado, o luxo do sofrimento calado. Ana, a duras penas, admitia que não era ela somente a portadora dos seus pensamentos, porque os outros também pensavam as mesmas coisas. Por que não iria Ana ceder ao mundo o que já é por direito do mundo. Ana já era do mundo, e talvez o fato que a tornara tão reclusa fora perceber isso, com susto e vergonha de quem é descoberta - perceber que ela era reconhecida por ser igual. Mas ainda era pouco, o sangue que corria, o molho de tomate sobre o macarrão na mesa de jantar, o óleo que dá o movimento à vida humana, o sentimento palpitante de vida, o ímpeto primeiro, a vontade cega, o animal que Ana friamente percebe dentro de si a sugerir um mundo próprio em resposta - era isso que seria ultimato para a vida solitária. A mesma vontade de ir em frente não importando como fosse, que causara a cegueira, iluminava agora as coisas como elas eram. Até ali. Pois segundo a experiência de Ana, as coisas são o que são no ponto em que se vê, e nele somente, até ali, e não mais.

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23.6.09

Maria X

Certo dia Maria acordara pela manhã, de manhã mesmo, e a manhã gelada e pela janela, da cama mesmo, ela podia ver o quanto não poderia ver em decorrência das brumas matinais úmidas e geladas. Que dia bom! pensou Maria e quase de pijama foi tomar café na padaria sem pudor e com uma alegria que a tornaria por um momento um ser social e gentil e sem pudor gastaria mais dinheiro do que podia porque era início da semana e Maria, Maria usava o mundo como podia. Maria feliz, satisfeita pela manhã, a moça do caixa, o quanto sorriu para Maria, ela não sabia, Maria se usava o quanto podia, Maria não mentia, era boa, pessoa tão boa, era má só com ela mesma, Maria, e com quem nunca vira até aquele dia.
Que a alma é como ela mesma uma adivinhação, Maria tentava. Ingênua não, mas de uma coragem assustadora a perseguição. Uma vertigem da coisa dobrando-se sobre ela mesma, e se afastando, se inventando. A verdade? talvez olhar a coisa desarmada... mas é impossível ter o olhar nesta situação compacta e despreparada, pois se vê não percebe e então... Maria não tinha respeito pela natureza, era de um amor tão grande que pretendia tomar para si a sua maior parte. Que Maria então seria? Já isso ela adivinhava sendo o sentimento da resposta, sabia ao certo que era o máximo que alcançaria. Se bastava? E como! a felicidade daninha em vida obstinada e cega, teria uma verdade.
Maria sentiu o seguinte em termos matemáticos, que era a língua universal compreendida por civilizações alienígenas, sentia que a coisa era um plano, folha de papel, e por isso a coisa não se enxergava e se dobrasse para olhar veria o que não era ela mesma, pois distorcida perdia a propriedade mais primeira que era sua verdade escondida do deus. Mas e se houvesse o espelho? Podia Maria usar o atalho do aparelho perfeito, da tecnologia primitiva do tempo em que para se construir o engenho era só ir direto ao ponto, misturando, esquentando, experimentando uma alquimia metafísica e mística para se chegar até o elixir sobrenatural e pronto, não era tecnologia, era magia que a ciência hoje explicou com cara nua de pau e sem vergonha e pudor de quem já sabia.
Porque na verdade o cliente faz pedido, é um sistema, não se sabe. Maria se arrumou com tanto esmero, que vaidosa, iria sair. Maria percorria o apartamento, abriu a geladeira trinta e duas vezes, mas tão ansiosa que sem fome só beliscou morangos deformados e siameses, mas era estação de morangos! Bom, Maria já ía sair e da porta voltou mais uma vez para desligar o som. Pegou o ônibus em frente de casa, na rua escura passou uma senhora de casaco de lã vermelho - por que a senhora? porque Maria viu, Maria observava, não escapava do instinto febril de tomar conta do mundo. As nuvens laranjas no céu nublado. Chegou no bar, modesta, sentaram na caçada numa mesinha de ferro amarela, marca de cerveja. Joana contava como havia, por pura intuição do ofício, desvendado a pergunta do professor, como era uma pessoa feliz e engraçada! Maria e o mundo púrpura. Maria mau prestava atenção porque era como se já soubesse das coisas. Victor prestava atenção atento, e como aproveitava para olhar nos olhos vivos de Joana: Maria e a inveja. O garçom que vinha trazendo garrafas. Nina a tudo comentava, "ele sempre faz isso", Nina era sempre isso naturalmente e Maria não captava.

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17.6.09

Maria IX

Maria relembrava o passado, pretendia o futuro reciclado, que medo... A liberdade promissora, as possibilidades opressoras exclusivas entre si... que era aquilo: um sentimento conhecido que sentia como a um medo... que medo... Maria queria ser... Maria, que medo de tanto o que querer... o ciclo, ah, Maria poderia escolher ter certeza do ciclo...o passado... poxa Maria, quanto zelo por si, quanta vontade, humildade, Maria era linda, não poderia a nada dar as costas... por que Maria? que medo... deixar de ser... poderia ser uma escolha, será... Ah Maria, o problema é que é ela mesma a Maria, e então...
Maria sentia-se como uma aberração da natureza cotidiana. Por que fora ser logo ela? ela que se perdia na verdade intrincada tentando viver dia a dia com o próprio comprometimento com a verdade. Sabia que seria tão mais fácil, mas não podia, Maria já sabia demais. Ela mesma, desde que nascera, buscara demais a verdade, sentia-se como sem escolha pois no começo não sabia. Maria se metera demais com a própria existência. Percorria a vida como a um passeio e não sabia o que olhar não podia parar tinha tanto para não poder esquecer demais e fora suficiente e mais e mais.
Maria, no caminho, visitaria a praça. Maria visitaria a praça e coberta de árvores faria o percurso. Ela iria como que perdida, olhando para os lados e as vezes vigiando se não era seguida. Olhou para cima e o flamboyam das milhares de folhinhas verdes contra o sol num mosaico expressionista que doíam-lhe os olhos da luz e da beleza. Maria respirava do mesmo ar. Não parava de andar em nenhum momento, atravessava o mundo com uma marca quase invisível e inodora, seria lembrada devido a raiva que ela mesma causara nos outros, seria lembrada nos fins de semana pelo outro lado da família, seria lembrada por pessoas velhas que gostariam de vê-la derrotada pelo dia seguinte. Como Maria era ingênua! Tinha a vontadade como por devoção. Acreditava na solidão porque não tinha ainda pensado na sustentabilidade prática do isolamento social, pior, Maria havia confundido as proporções quanto a aproximação com o mundo metafísico e achava que a unidade do universo seria ultimato contra o contato sórdido com o solo cru. A umidade quando vista cheirava a mofo.

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8.6.09

Maria VIII

Maria acabou de chegar exausta da faculdade, mais cansada da distância que das aulas pois pouco prestou atenção. Maria percebe seu ponto quase pelo padrão das luzes amarelas e azuis que riscam o ar do lado de fora da janela do ônibus. Ela vai equilibrando-se do balanço até o motorista, "Fico aqui", desce, "Boa noite". A calçada dá para um parque arborizado, um oásis na cidade, já fechado agora às onze. Do outro lado da rua movimentada mesmo a essa hora, famílias inteiras remexiam as enormes pilhas de sacos pretos de lixo de um enorme prédio residencial, daquele bairro particularmente nobre, de frente para uma bela e poluída praia frequentada não pelos moradores dali. Maria se aventura pelos quarteirões em direção ao lar, só seu. As luzes coloridas dos postes atravessam a umidade salgada do ar noturno produzindo lindos halos de riscos finos de luz em todas as direções da circunferência, como o próprio sol que as mariposas ali à noite confundiam. Maria se distrai na caminhada habitual. Ela pára num bar para comprar cigarros, dois maços de carlton, hoje a noite vai ser longa, segunda feira, e Maria não gosta de ficar sem cigarros pela manhã; ela se desvia dos bêbados e das cadeiras empilhadas até o balcão. Depois Maria vai ao super mercado para comprar bebidas, ela se diverte na seção alcoólica toda coloria e sempre a de maior variedade nos mercados. O lugar já quase fechando e Maria apreciando atentamente alguns rótulos que ainda não conhecia, tão coloridos, de riscos delicados e simétricos, arredondados, letras de fontes charmosas e clássicas. Maria se decide por algumas cervejas long neck, que ela gosta mais, e o bom e velho Dom Bosco. Maria sempre se divertiu com o padre pedófilo que literalmente milagrosamente era algum tipo de padroeiro da escola em que estudou toda a sua vida. Ao chegar em casa Maria ligou o som com a trilha sonora da própria vida, pôs as cervejas molhadas no congelador e serviu-se de um copo de vinho quente e roxo num de seus copos enormes de meio litro, gostava de copos grandes pois poderia por tanto que levaria mais tempo até precisar reabastecer, Maria era de uma preguiça sonhadora. Sentou-se de frente para a janela aberta que se estendia por toda a parede da sala; dava boas goladas no vinho. No escuro Maria observava os apartamentos dos prédios próximos através de suas janelinhas coloridas, já familiarizava com as luzes de cada um, aquele com a tevê sempre ligada na novela, a do quarto com persianas e o armário recortado em tiras, aquele do jovem vidrado no monitor, a área de serviço com o varal das toalhas verdes e laranjas, aquele que só se via o borrão da lâmpada pelo vidro escurecido. Maria fumava seus cigarros mais saborosos com a bebida, batia as cinzas num cinzeirinho de alumínio que a antiga moradora deixara ali.
Maria não tem fome, sempre ansiosa com o próprio destino distante. Fraca com a bebida, fato que nunca a envergonhara e nem reclamara, algumas músicas mais tarde e Maria já estava tonta, media o tempo pelas músicas, quando media. Se levantou para dançar um pouco, como uma bailarina balançava os braços inteiros, as mãos, como de maestro, armadas, o corpo serpenteava no ritmo musical, lentamente Maria ía de um lado para o outro com os olhos fechados no escuro. Acendeu outro cigarro e entre uma golada e outra via a brasa riscar a escuridão no mesmo movimento de seu corpo desperto no mistério da noite solitária. Maria já havia passado da metade da garrafa e começava a confundir as coisas. Ela mesma, a cadeira, o piso, o apartamento, o prédio, a vida lá fora, Maria andava descalça sem rumo, sem destino, se esfregando nas paredes num impulso de lambê-las com a língua seca, sem palavra, sem a quem dirigi-las. Maria olhava tudo o que podia de perto, analisando descobria que a textura das coisas era do que as coisas eram feitas, seus pedacinhos irregulares comprimidos pela união da singularidade das coisas. O tecido do sofá era milhões de finas linhas entrelaçadas que deixavam buracos numa proporção maior que a própria superfície vista de perto. As paredes eram na verdade uma casca dura e opaca com saliências e vales, grãos de areia que a tinta cobriu eram como espinhas pontudas; em certos lugares a tinta branca já descascava e deixava à mostra o tecido vivo e feio do prédio. A televisão que era peças de plástico encaixadas, frágeis e negligenciadas como se tivessem sido destacadas de uma cartela. Todo pedaço de ferro já era enferrujado e as folhas brancas já estavam marcadas do que se escreveu por cima. Maria se alarmava pois a virgindade de tudo já havia sido explorada, fuçada e largada a decadência de beata; abraçou a parede mas a única resposta que obteve foi o frio que lhe beijava a bochecha e não cedia pois vinham da raíz mais profunda do prédio na terra. A matéria exata da noite lhe caía sobre os ombros, mas se as coisas se mostravam tão límpidas era dever de Maria julgá-las, e aí confundia ao inspirar o vento que percorria o apartamento de janelas abertas, trazendo até ela novidades na percepção do próprio pensamento. A vida eloquente de bêbada, percebia toda a sua vida como se estivesse sempre embriagada de uma lucidez ferrenha e ditatória, Maria queria ter alguém com quem dançar uma valsa em comemoração ao triunfo de uma certeza vibrante cujo assunto era desnecessário salientar por isso mesmo tinha-se certeza porque nada era resolvido mas não era mesmo importante que o fosse - o importante era dançar a valsa manca de um par.
Maria fora para cama com uma garrafa de cerveja, batia a cinza do cigarro na mesinha de cabeceira, que alojava um telefone e folhas A3 empilhadas cheias de desenhos de bêbada e da faculdade. Maria dormiu de braços abertos, sem se cobrir, com o travesseiro entre as pernas. A alegria íntima estava justificada e o amor impessoal tivera seu significado. Maria roncava morta e acordaria com olheiras de quando fosse defunto. Maria atingira o triunfo necessário daquele dia, espremera a noite até que não restasse estrela e se escondeu segura no esquecimento de si mesma ao sonhar a noite toda um sonho que não recordaria ao despertar.

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6.6.09

Maria VII

Dez horas da manhã. O despertador do celular toca, Maria estende o braço até a cabeceira e aperta o botão para "modo soneca". A cena se repete sete vezes, sem serem contadas, em intervalos de dez minutos. Maria levantou, ligou o som que começou de onde havia parado na noite anterior, despiu-se, e nua afrontou o espelho do banheiro. Maria era bonita, cabelos castanhos longos e lisos, os olhos vivos. Olhou olho no olho, depois mais de perto debruçada sobre a pia. Olhou o próprio rosto inspecionando minuciosamente cada poro, do queixo a testa, demorando-se no nariz: espremeu dois cravos. Afastou-se e observou as próprias curvas. Com as mãos Maria levantou os seios e empurrou um contra o outro. O olhar fixo através do espelho naquela realidade absurda que é o reflexo exato sem a distorção do que é pessoal - o espelho impessoal. Maria escovou os dentes com os olhos ainda sobre si. Calma, entrou no boxe minúsculo para um banho quente. Maria tinha calma, observava as formas que lhe mostravam os olhos como quem admira uma beleza natural. Os azulejos ordenadamente separados pela pasta branca endurecida e amarelada, o boxe de plástico fosco com formas em relevo, o alumínio coberto de uma ferrugem alva, a substância de estado indeciso do sabonete pipocando bolhas, o movimento ametódico da água que caia do chuveiro como se viesse do próprio oceano e abraçava toda Maria, a gravidade baixa, era tudo natural. Nesse estado de entorpecência em que Maria mergulhava nas coisas, podia atingir uma glória, uma aleluia própria da ínfima unidade que a milhões de anos perdeu-se na criação. Eram os únicos momentos nos quais Maria era verdadeiramente feliz. A felicidade irrevogável e a compreensão extenuante logo lhe escapavam pois não eram sustentadas por nenhum esforço que não o da própria existência. Mas Maria, quando percebia, queria manter aquela resolução absoluta para todos os problemas do mundo, inclusive os seus. E já não sabia se havia perdido o estado de graça no instante de percebê-lo ou no esforço necessário do seu instinto de sobrevivência.
Maria se vestiu com a primeira roupa a vista que encontrou intocada estendida na cama em que dormiu. A camisa estivera ali estirada talvez por dias sobre a cama de casal que era toda de Maria, a outra metade da cama pertencia ao que largava ali quando se cansava de usar. Foram abandonados nessas condições uma calcinha branca, um velho short jeans, um livro de letras pequenas a séculos interrompido pela metade, um caderno de rabiscos e algumas canetas hidro-cor. Maria enfiou um bloco com alguns textos rascunhados na mochila, depois uma caneta, um casaco, o celular, a bolsinha de moedas e notas, e largando as janelas do apartamento abertas como de costume, saiu trancando a porta antes de enfiar por último as chaves no mesmo compartimento que todas as outras coisas. Maria desacompanhada desceu o elevador encarando o espelho, estava hoje especialmente encantada com a sinceridade de tal dispositivo. Mas talvez nem fosse por isso que tanto encarava, fato era que Maria hoje não irreconhecia o que via. E aproveitava.
Térreo. Maria dá no pátio do condomínio de prédios antigos e velhas estocadas cujo único contato com o mundo era prestar queixa da vizinha Maria, especialmente pelo som integralmente ligado em alturas absurdas para seus ouvidos já surdos. Rua. Maria percorre algumas poucas quadras já familiares na enorme cidade estranha e cinematográfica. Maria espera a condução no ponto, um ônibus grande e novo, climatizado e com poltronas fofas de veludo colorido. O ponto, em frente a entrada de um famoso colégio católico frequentado por adolescentes sonhadores e perdidos talvez numa realidade alternativa saída diretamente da novela das seis e dos bolsos do pai freguês. Sempre ali no ponto alguns vendedores de rua com suas barraquinhas que não passam de quatro pernas de madeira que suportam um compensado remendado e recompensado ocultado por debaixo de caixas e caixas das mais variadas guloseimas de diversas marcas e sabores, na maioria balas mentoladas para refrescar o hálito dos adolescentes enamorados ou dos caprichosos. No ponto Maria reconhecia alguns rostos do ônibus, mas nunca chegara mais perto, nunca chegaria, aliás, a sequer conhecê-los. Pois no ônibus Maria entrava e sentava-se sozinha torcendo para ter as duas poltronas livres para se esticar na leitura de um ou dois contos que deveriam ser suficientes para fazê-la viajar por todo o percurso. Nessa época Maria já não mais familiarizava com o mundo real, ou talvez, como ela própria pensava, se familiarizava demais, pois sentia correr na veia o mesmo sangue escuro de sombra daquele que todo ser vivo sangrava. Maria era tão viva que às vezes não se encontrava no estado desperto onde o tempo desenrolava no mundo cotidiano dos detalhes que esvaecem na repetição.

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29.5.09

Maria VI

- origem

No princípio havia Maria. E casta, Maria dera a luz a Deus. E Deus, como já explicado e detalhado em um livro que lhe originaria, criara tudo o que existe. No princípio não havia Maria - o princípio era Maria e não havia onde haver. Neste tempo, que não era tempo, nada havia ainda sido delimitado às bordas da existência unitária de cada coisa e todas as coisas eram a mesma coisa. Maria, ainda sem graça e vergonha, imaginou o mundo, a vida, e vislumbrou a possibilidade de graça nesses novos enfeites que eram as quantidades possíveis das divisões entre as coisas. Foi a primeira vez que ocorreu a Maria existir outra pessoa. A segunda vez foi quando Maria, no fim de uma agonia, descobriu que o que carecia era de se comunicar e nomeou então todas as coisas com seus respectivos nomes, outra vez limitando suas existências pois as palavras poderiam ser lidas de trás para frente e em outras línguas - era necessário uma tradução que invariavelmente tornava lento o processo de entender as coisas na medida em que se demorava mais para sê-las. Logo as vidas passaram a durar menos tempo do que o ciclo de vida e morte do universo que passou a ser cada vez maior, épico até não se poder mais contar suas divisões no tempo de uma vida, era agora infinito e sempre.

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28.5.09

Ana IV

- àquela que não tem direção voltou (ou foi)

Tudo que Ana sabia era a quantidade da sua ignorância. Ana era barroca. Tinha a face barroca esculpida na cara. Era alta, fria, magra, o cabelo curto absolutamente preto na altura dos olhos, e mentirosa porque nem ela mesma sabia da verdade. Se a perguntassem o que estaria olhando renponderia: - as coisas, se tentatesse maior precisão haveria de confundir a si mesma, e quem perguntou teria ganho a resposta e a palavra de definição que aprisionaria Ana para sempre em lâmpada mágica ou em seu verdadeiro nome demoníaco cuja menção a subjulgaria para sempre. Ana vivia no exato mundo para o qual não fora feita. Pagava o preço de ser auto didata reaprendendo tantas vezes a mesma coisa. Ana sofria de presságios bons e maus e precisava seguidas vezes repensar a si mesma para decidir entre alegrar e entristecer. Nessas horas místicas sua religião era a superstição já que era a única na qual Ana poderia ser profeta, e Ana o era. Ana sempre começava do começo mas irreconhecia e poderia ser tudo ao contrário. Quando tentava explicar o meio se perdia na incógnita que era a transposição das coisas: Ana não sabia dizer os caminhos que tomara. Ana era incapaz de se aprofundar muito nas conclusões pois quando atingia certa profundidade todas as profundidades se confundiam e perdia o fio do que era mesmo. Ou Ana era demais superficial ou era profunda demais. Ana perdia a firmeza das mãos quando não sabia como reagir diante do que queria. Ana talvez quisesse só a possibilidade e quando alcançava lhe faltava a impossibilidade. Mas antes carecia da capacidade fundamental de transmutação. Ana previa o começo e o fim. Ana era um resumo da relevância de todas as coisas mas algo lhe faltava no conflito necessário das nuâncias que evitavam justamente uma coisa de ser a outra.
Espantava Ana a lucidez que era pensar num só dia, destituído de tempo, e ao mesmo tempo o dia era exato e era um símbolo. Um dia não poderia ser mensurado do modo como se medem horas, minutos. Um dia começava depois do começo e terminava antes do fim. Mas então qual era a novidade e o que escapava do habitual? Era o modo como Ana no mesmo dia podia admirar a passagem do tempo e noutra hora esperava a eternidade passar como quem espera sentado. E sentada via as coisas paradas que fatalmente envelheciam e não poderia corresponder àquilo com um sentimento de si mesma pois era incessante o seu observar de modo que não morreria nunca. Sua idéia de morrer seria então um desconhecimento, um esquecimento de tudo que não tinha idéia de como seria estar morta e desconhecer o próprio estado de morte. Já viva não podia perceber o que dentro de si mesma reconhecia o mundo, era algo que espreitava por detrás da própria Ana através do seu olhar oblíquo que ela somente poderia alvejar a própria consciência olhando para dentro e deixando as coisas turvas até inexistirem senão dentro dela mesma, e poderia aí então sentir o que era. Pensar na morte era impossível, pois se pensar na vida já era olhar para dentro, pensar na morte não poderia ser olhar para fora, nem ao menos para lugar nenhum se não houvesse quem olhar. Mas Ana nem sabia se viva, Deus!, se mesmo viva haveria quem pular amarelinhas na escola em meio ao alvoroço do recreio suado, se não ela mesma, ela que vendo enxergava com os próprios olhos. Se mesmo viva não seria ela mesma a força corruptora, suicída e vil do mundo que a milênios move o patriarca e o pebleu sob as mesmas ordens universais, comandos que por serem de máquina funcionam impiedasomente a subjulgar qualquer impulso humanitário ou egoísta. A maquinez era a natureza. De que outro modo se justificaria a engrenagem de dentes eternamente esculpidos contra os outros? E Ana precisava tanto justificar, pois achava que se não justificasse estaria alheia à ciranda. Mesmo nunca tendo se livrado da solidão ansiosa que tornara sua felicidade tão doída, pois tomando sua vida como movimento de compreender nunca chegara ao fim de uma só volta em torno da compreensão, sempre incumbida pela ordem suprema natural a uma compreensão superior em intermináveis vislumbramentos que se perdiam em sua própria engrenagem à parte, movida pelo fulgor do mundo o qual tentava forjar provas, confirmadas em escapes esfumaçados e poluídos dessa realidade verdadeira que achava não era a sua. Ou se era, Ana poderia concluir que sua realidade não era a mesquinha, pois a mesquinhez estaria no fato da realidade ser um recorte da sua verdade. E se fosse o contrário e todo o movimento vivo, confirmado pelos olhos dos outros seres que compartilhavam a realidade, Ana saberia que era ínfima parte, e saberia a quem entregar suas provas: ao deus criado!

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27.5.09

àquilo

- àquilo que não pode ser nomeado

Eu não sei o que aconteceu ao certo. Pessoas debandaram. Um monte de gente pirou. Eu mesmo já pirei uma vez. Nos recuperamos e mudamos. O que acontece eu não sei mesmo. Vem acontecendo. Éramos uma trupe. Na verdade várias, interconectadas através das amizades em comum. Não é errado falar que éramos uma população. Tínhamos uma cultura em comum, criada e cultivada por nós, reafirmávamos um o outro. Também frequentávamos os mesmos lugares, ouvíamos as mesmas bandas e líamos os mesmos livros, enfim, tínhamos as mesmas figurinhas.
E depois de tempos, aos poucos, sem se notar, tudo mudou, e não resta quase nada. Quer dizer, os resquícios são muitos e evidentes. O que se perdeu foi aquilo e hoje muito do que é é devido àquilo.
Eu falo por mim. Não soube o que queria da vida. Eu sofri da desilusão comum, mas levei muito a sério. Em seguida, deixei de querer alguma coisa específica. Perseguia um sentimento vago e segui filosofias relacionadas às coisas acontecerem naturalmente. Deixei levar. Parece que muita gente fez isso também, mas muita gente não. Alguns amigos largaram a faculdade, muitos mais trocaram de curso. Uma amiga passou a frequentar a igreja. Outra despertou um tipo de psicose. Eu mesmo tive pânico por um tempo. E muitos ainda estudam ou trabalham, ou os dois. Nós buscávamos um mundo que não existia, não onde e quando vivíamos. Muito menos sabíamos qual mundo queríamos e hoje ainda não sei nem acho que um dia saberei. É muito mais um sentimento. Não sei o que é preciso, na prática, pra estes sentimentos se tornarem um mundo: era essa a nossa inviabilidade.
É claro que nenhum de nós se arrepende porque, afinal de contas, devemos o que somos àquilo. E somos gratos pois adoramos o que somos. De qual outra forma mergulharíamos, com a respiração presa e de olhos fechados, fundo no que somos. De que outra maneira teríamos o mundo nú? e nós mesmos também despidos? Ali, como num microscópio, num divã, num telescópio, com nossa alma em cheque. Se auto analisando, sem conceitos, sem regras. Refletindo. E talvez o mais importante, estávamos acompanhados.
O que mudou está relacionado ao que nos excita. Os prazeres mudaram. Às vezes o prazer ainda é o mesmo. Mas sentimos de outra forma. Hoje eu sei muito melhor quem eu sou, mas não o que eu quero. E é esse conhecimento que me ajuda a traçar um rumo e seguir em frente. Meus objetivos são descritos pelo meu âmago. Assim eu tenho a certeza de estar no caminho certo, apesar de não acreditar que o caminho certo exista.

26.5.09

Graça II

- é preciso coragem

Graça que quando andava na rua ao ouvir conversas alheias tinha que fazer um esforço enorme para não rir. Seria deixar escapar que tomara para si as dores que os conversadores egoístas guardavam para si. Pois eram interlocutores humanos mundanos a conversarem, acima de tudo e sem terem consciência, com o próprio deus.
Oh! Graça era como o som proferido cujo significado vinha antes da interpretação da palavra como código letrado, o espasmo! Graça seria compreendia por uma civilização que por haver sumido a tanto tempo deixara rastros escassos que faltariam milênios até ser descoberta, e novamente esquecida. Assim era Graça! Imemorável de outra forma que não seja através da nitidez arqueológica da sabedoria popular, impessoal e dramatizada por atores fantoches num palco subconsciente coletivo paradigmático mas honesto de uma forma que apenas se reconhece a verdade e basta. Reconhecer-se é absoluto, como última tentativa da natureza de adestrar uma raça cuja evolução está em patamar artificial, diante da irresistível possibilidade de criar a si próprio, egoístas de papo furado, metodistas ateus e batistas escandalosos e a salvação misericordiosamente sócio-econômica.
Graça, no meio disso tudo, no mínimo perdida, perdida por saber demais, ela que não sabia de nada, mas achava que sim. A sorte de Graça era saber que muito do que deve-se saber é uma pista pra um saber maior adivinhado, e isso a salvava. Mas não pelo motivo que deveria ser salva. Era salva por sorte! Por que a princípio, saber que a verdade está no escuro não quer dizer que não se pode vê-la, mas Graça achava que não, Graça pensava que a verdade não deveria ser vista, e ela não entrava no escuro. E sem saber que poderia acender a luz, Graça viveria a vida engraçada.

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28.8.08

sorte do dia:
você será eu e eu serei outra pessoa

27.10.07

Formiga

Existe uma felicidade que é não mais que um bem estar, e ainda sim é a felicidade mais verdadeira a qual pode-se alcançar. E só se percebe de uma vez, de súbito, em tenra e gentil prontidão. Somos surpreendidos fora de hora e de época pela constatação inequívoca que reconhecemos, pois tão familiar, mas da qual não guardamos lembrança senão uma marca que cicatriza e não sabemos aonde foi. É uma felicidade tão doída e a gente aguenta como a um segredo guardado pois não sabe-se contar o sopro de vida senão com um suspiro, um olhar e no máximo, já quase perdendo o fio, com um sorriso leve que a ninguém se dirige e de ninguém exige retribuição.

Ah! a formiga! Que diante de nossa indelicadeza parece nascida como de uma forma - a forma em forma de formiga. A formiga unitária em marcha no extenso caminho de formigas que percorre em mão dupla o morro alto e desolado. Do cume ao pé as formigas realizam seu trabalho secreto de carregar não sabe-se o que não se sabe para onde ou onde jorra a matéria prima valiosa que só se encontra longe. A formiga, não sabemos temê-la pois sempre tão ocupada. A formiga divisível na avalanche ordenada de grãos inteligentes e dirigidos. A formiga, capaz de aguentar dez vezes o próprio peso e tem tão pouco tempo de vida e nenhum tempo de sobra para descansar do seu instinto engenhoso de mover-se, parar, andar, carregar, balançar as antenas, parar, andar em círculos sem tropeçar nas próprias centenas de pernas e patas que fixam na terra como alfinetes milagrosos do futuro.

Desprendera-se numa liberdade além do limite da prontidão do corpo capaz de manejá-la e absorvê-la como entendimento. Que liberdade era essa? intocável, luz no ar, invisível que se mostra por detrás das coisas possíveis, na sua impossibilidade opressora, como um fundo de descanso. Que liberdade é essa que torna as coisas sem fundo, sem palavra, destorna em existência nova a deslumbrar singularmente a vida íntima de um único ser vivo insaciável, instintivo, natural, sagaz a ponto de perceber-se desperto como a um sonâmbulo. A maturidade da voz cada vez mais nebulosa e incompreensível em suas origens mas que tanto satisfazem a necessidade prática de viver. A idade a avançar cada vez mais insignificante; as idades de conta jovem cada uma por si bastava de sensações a uma vida inteira, antes dos nervos incessantemente instigados a revidar, a anestesia precoce inevitável de um ser vivo que conta o tempo. Que liberdade é essa como uma vida inalcançável dentro de nossas próprias vidas, mas que é tão maior que é como um momento em comum de todas as consciências pregadoras de um rito. O que significa tudo isso se na prática vulgar busca-se apenas uma felicidade independente da verdade, uma benção na ignorância coroada a hóstia e vinho. De que importa tudo isso se é tudo a mesma coisa e se confundem a importância e o preocupado, de que vale a serenata fúnebre se o fim como o começo é indistinto para todos.

Ah se a vida não é pálida como uma vela e o calor, o calor, a luz vem da própria e lenta degradação risonha. Se a vida certas horas é tão impessoal que é feliz, se sua virtude pertubadora é alastrar-se sobre todas as coisas e a tudo tornar seu nicho de sobrevivência como uma engrenagem ecossistemática desequilibrada pelas eternas novas palavras que surgem no próprio ventre.

De olhos fechados a visão é tão real que só mentem os sentidos e em quem acreditar atribuindo a sinceridade mais virgem, aquela no olhar sempre imaturo de braços abertos, mas se de olhos fechados tudo que se é é tão ilimitado a ponto de ter-se certeza de que pode-se alcançar o estado de ser tudo, o próprio deus indivizível e justo, justamente humanizado, ávido e virtuoso herói, mártir de si mesmo.

Que liberdade é essa que me deixa desempregado? de tudo que eu não sabia até hoje que queria evitar como quando não se sabe o que se quer então se quer o que não se sabe. E que se está satisfeito e íntimo de si mesmo. Se está satisfeito da leveza quase material da consciência sossegada, o corpo quase largado, a rigidez perdida, o esforço vil da vaidade desprendendo energia para a vida de observar a vida local. O amor local, absoluto. A certeza primordial do olho no olho.

E por isso eu sou o ser inofensivo, o ser mais previsível do mundo, o ser mais amoroso, portanto, previsível.

27.6.07

Graça I

Quando ía a algum lugar Graça sempre resolvia: iria caminhando. Quando Graça caminhava na rua olhava bem dentro dos olhos que cruzava. Graça adivinhava, num lampejo de sanidade, a vida tão bem guardada por debaixo da pele que ao olhar de Graça inquietava-se, pois a pele nua perdia o movimento treinado e automático, para mover as pernas e o pescoço de forma artificial, calculada em tempo real. Invasora da privacidade, Graça não ligava para o pudor municipal! Mas Graça nem gostava tanto das pessoas. Fazia olhar por força de um instinto solidário que não sabia de onde vinha tanta bondade. Graça gostava mesmo era de olhar da calçada para dentro de casas, de bisbilhotar minunciosamente as paredes retas e descoloridas. A madeira velha cuja cuja pintura descascava. Em toda casa Graça via seus anos de glória e decadência, se perdia e já nem sabia qual era o presente. Graça amava! Ao passo que se uma pessoa revelava a Graça uma vida, a visão de uma casa descortinava a vida de toda uma família. Gostava das casas mais antigas, nessas podia pressentir gerações passadas. Os puxadinhos, os sobrados, era riqueza para Graça toda aquela multiplicidade unificada e comprimida. Para Graça, fazer o mesmo caminho na calçada do outro lado da rua já era nova aventura, nova vida palpitante. Graça vislumbra novo universo nas janelas abertas, nas portas entreabertas e nos portões fechados. A visão, estava para Graça, aberta. Certa opacidade nas coisas era para Graça um sinal cujo significado era determinado no exato momento em que capturava. Dez passos a frente Graça desvencilhava daquela vida para novamente afundar na felicidade e tragédia da próxima família. Havia uma casa na qual, sempre na hora do almoço, uma senhora sentada em sua cadeira de balanço a assistir a tevê do outro lado da sala. Como Graça sabia! Dos filhos, dos netos: um na faculdade, outro no exterior - a senhora pensava, Graça pensava.
O dom de Graça é adivinhar o que há de mais ordinário em cada um. Graça sabe do que somos feitos. Mas Graça também herdara de Deus o poder da criação, quer seja o que restou desse poder depois de gasto na criação. E Graça frustrada pela impotência do poder teria de reinventar o que era tão verdadeiro, tão certo, que não importaria se não fosse aquilo que de fato fosse. Bastava a Graça ela mesma ser, e bença!

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10.6.07

No Fundo

- Leonardo Assaf

No fundo sempre resta,
da panela o almoço de hoje
o que pode ser aproveitado mais tarde
se a vontade for a mesma

No fundo sempre resta
da garrafa de pinga, uns três dedos
que amanhã me leva o cansaço embora.

No fundo sempre resta
de uma música guardada na memória
que enriqueça de delírio um momento
dedicado a mim.

No fundo sempre resta
da insonia, a solidão necessária
pra pensar que o pouco que sobrou
pudesse preencher o muito que faltava.

4.1.07

Graça (prelúdio)

Graça era um nome que já existia
então, já justificado, esperado
se Graça era surpresa
Graça era também moça
como se fosse prostituta
estuprada!
sem falar, mal faladar
dissimulava ingenuidade
enganava toda cidade
enganava todos tolos
e todos o eram
ao olhar de Graça
todos moços
ao vê-la
assim sem graça


(este blog está permanentemente desativado)

editado em 26.5.09
porque a gente não prevê o futuro

23.11.06

Os ombros suportam o mundo

- poema de Drummond

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossege
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

13.11.06

A perfeição

- texto de Clarice Lispector disposto assim por algum padre

O que me tranqüiliza
é que tudo o que existe,
existe com uma precisão absoluta.


O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete
não transborda nem uma fração de milímetro
além do tamanho de uma cabeça de alfinete.


Tudo o que existe é de uma grande exatidão.
Pena é que a maior parte do que existe
com essa exatidão
nos é tecnicamente invisível.


O bom é que a verdade chega a nós
como um sentido secreto das coisas.


Nós terminamos adivinhando, confusos,
a perfeição.

8.11.06

Não


a que ponto há de chegarmos antes
daquele que expectante deveríamos
consentindo e anestesiados pelo mar gelado
amordaçados, não aguentarmos mais!
a palavra presa na garganta
exprimindo completos diagramas
preenchidos para nos enquadrar
a essas pessoas que vivem sempre
a vulgarmente prestar contas

poderia muito exagerar à beça
e pôr nas arestas dessa palavra-peça
plurais, aumentativos e superlativos
achados com audácia num dicionário encardido
que tanto esperava na estante
por esse instante de ignorância

ah! se não somos seres milagrosamente vivos
repetindo frases e saberes convencionados
tateando sós no escuro entupido
a repetir mais uma vez esperançosos
para responder com a medida absoluta
de conotação extensa e prazo vitalício
a um eventual vazio vício
que nos leve, só, a mais uma fuga